Cultura negra no Recife: roteiro por lugares representativos
Sendo o Brasil o país com a maior população negra fora da África, é absurdo pensar no quanto a memória desse povo é esquecida na nossa história e nosso dia a dia. Não que seja surpreendente, porque esse apagamento faz parte do racismo que marcou nossa história e ainda segue tão presente. Mas nos cabe, então, fazer um esforço para ir além do que querem nos contar e conhecer outros olhares, né? Eu nasci e cresci na capital pernambucana e conhecia muito pouco sobre a cultura negra no Recife.
Por isso, fiquei muito feliz por fazer a caminhada Circuito Afro do Olha! Recife, projeto do Visit Recife que oferece passeios gratuitos a pé, de ônibus, de bike e de catamarã. São várias rotas com temas diferentes que se alternam. Para conferir os roteiros disponíveis atualmente, acesse o site do Olha! Recife.
Nesse tour guiado, passamos por alguns lugares que demonstram a importância da cultura africana na construção da nossa identidade. O roteiro se limitava ao Centro da cidade, já que o percurso era a pé e durava poucas horas, mas no final desse post acrescentei alguns outros lugares do Recife que também se destacam na disseminação da cultura afro-brasileira.
O passeio teve como mote do mês da Consciência Negra, que homenageia Zumbi dos Palmares. Caso você não se lembre das aulas de história, aqui vai um resuminho: ele foi o último líder do maior quilombo do período colonial, o Quilombo dos Palmares, que existiu por mais de 60 anos e chegou a abrigar mais de 30 mil pessoas. Hoje, Zumbi é um dos maiores símbolos da luta do povo afro-brasileiro por liberdade.
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Praça da República
Começamos o Circuito Afro pela Praça da República, o mais antigo jardim público da cidade. Com origem no século 17, no período de domínio holandês, a praça fica no Centro do Recife e é rodeada por importantes edifícios históricos, como o Palácio do Governo e o Teatro de Santa Isabel.
Mas o que motivou nossa parada lá, e que pode passar despercebido para um visitante desavisado, não foi nenhum prédio ou monumento, e sim uma árvore. O baobá da Praça da República é o mais famoso entre as mais de 100 árvores dessa espécie em Pernambuco, estado que concentra o maior número de baobás fora da África.
E a razão para que ele esteja nesse roteiro é que o baobá é um dos símbolos fundamentais de culturas africanas tradicionais. A planta, de origem africana, representa liberdade e resistência.
Estátua de Zumbi dos Palmares no Pátio do Carmo
O ponto seguinte do passeio foi o pátio em frente à Igreja de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife. Mas o foco não era a igreja carmelita, que é barroca e bonita, e sim uma estátua relativamente discreta, assinada por Abelardo da Hora.
A estátua retrata Zumbi dos Palmares e não tá ali por acaso. É que supostamente foi nessa praça que a cabeça de Zumbi foi exposta depois da morte dele, em 20 de novembro de 1695, para servir de exemplo para outros escravizados que quisessem “se rebelar”.
Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos
De lá, fomos para a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos do Recife, construída em 1630 pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, associação formada por pessoas negras escravizadas.
Essa tendência associativa era uma mostra da resistência e solidariedade entre os diferentes povos africanos escravizados, se estendendo dos quilombos às áreas urbanas. Segundo nosso guia, apesar de não terem recursos financeiros, os integrantes da irmandade não mediram esforços para construir uma igreja tão rica quanto as da nobreza. Mas além da existência da igreja em si, vale saber sobre o que já aconteceu por lá.
Entre as muitos tribos e nações de origem das pessoas escravizadas trazidas para o Brasil estavam os do Congo, que tinham o costume de eleger um rei entre eles. E lá na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, foi autorizada a coroação de um rei africano em suas festas.
Assim, a igreja passou a ser palco de rituais marcados por danças, batuques e outras tradições que não faziam parte da liturgia católica. E de acordo com a Fundação Joaquim Nabuco, foi a partir de cortejos e coroações como essas que teve origem o maracatu, uma das expressões culturais mais bonitas de Pernambuco.
Pátio de São Pedro
Não fiquei surpresa ao ver que o Pátio de São Pedro, área que fica em frente à Igreja de São Pedro dos Clérigos e é rodeada por casas coloniais, estava incluído no roteiro do Circuito Afro. Afinal, o pátio abriga o evento Terça Negra, promovido pelo Movimento Negro Unificado com apoio da prefeitura.
Realizada desde 2001, a Terça Negra tem o objetivo de valorizar grupos musicais que trabalham com ritmos de origem africana, como maracatu, coco e afoxé. Vale muito a pena conferir a programação no site da Prefeitura do Recife quando se você estiver pela cidade numa terça-feira.
Mas o que eu não sabia era que o Pátio de São Pedro também é importante para a cultura negra por outro motivo. É que ele abriga uma estátua de Solano Trindade, poeta negro que nasceu em 1908 ali no Bairro de São José, numa rua juntinho do pátio. Solano Trindade foi um dos fundadores da Frente Negra de Pernambuco na década de 1930, tendo servido de inspiração para muitos militantes negros.
“Nas primeiras reuniões que levaram à formação do Movimento Negro do Recife, na década de 1970, de acordo com as memórias de Inaldete Pinheiro, as poesias de Solano eram lidas e relidas, debatidas e comentadas por aqueles que se reuniam para discutir a situação dos negros na cidade”, relata esse artigo de Isabel Cristina Martins Guillen.
O conjunto arquitetônico do Pátio de São Pedro foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 1938 e sempre esteve ligado a movimentos culturais do Recife. Apesar de mal preservado, o lugar é bonito e abriga restaurantes e equipamentos culturais como o Memorial Luiz Gonzaga e o Memorial Chico Science.
Pátio do Terço
E o penúltimo ponto visitado no roteiro dedicado à cultura negra no Recife foi o Pátio do Terço, que não é tão grande quanto os pátios anteriores, mas também é um lugar emblemático da cultura negra no Recife. Localizado em frente à pequena Igreja de Nossa Senhora do Terço, ele tem especial importância num dia específico do ano.
É ali que se realiza, nas segundas-feiras de carnaval, a Noite dos Tambores Silenciosos. O evento mistura a cultura carnavalesca com cultos de matriz africana, reunindo nações de maracatu de baque-virado de várias partes do estado para louvar a Virgem do Rosário, padroeira dos negros, e reverenciar os ancestrais africanos escravizados.
Como explica um artigo da Fundação Joaquim Nabuco, “no Brasil, os negros privados de sua liberdade não podiam manifestar suas crenças e tradições. Realizavam então cortejos de lamentações às escondidas e em silêncio, dando origem mais tarde ao nome da celebração: Noite dos Tambores Silenciosos. Mesmo depois da abolição da escravatura, esse ritual continuou a ser realizado. Com o passar do tempo, todas as comunidades negras do Recife foram se agregando e o evento sempre foi realizado às segundas-feiras, dia das almas nas religiões de origem africana”.
O ritual, que tornou-se um dos destaques no calendário da folia pernambucana, chega ao auge à meia-noite, quando as luzes são apagadas e os instrumentos silenciam. Tochas são acesas e levadas até a porta da igreja pelos líderes dos maracatus, que entoam cânticos em idiomas de origem africana.
Na mesma rua, passamos também pela fachada da casa de Badia, onde ficava um dos mais antigos terreiros xangô do Recife. Badia era considerada uma grande carnavalesca, tendo participado de muitas agremiações de frevo e maracatu. E um pouco mais adiante se encontra a sede original do Saberé, um antigo bloco de samba.
Monumento ao Maracatu
No fim da rua, em frente ao Forte das Cinco Pontas (que abriga o Museu da Cidade do Recife) encontramos o último ponto desse roteiro: o Monumento ao Maracatu. Essa escultura, também assinada por Abelardo da Hora, foi inaugurada em 2008.
O monumento é composto por oito figuras fundidas em bronze, cada uma com dois metros de altura, e representa um cortejo de maracatu de baque virado, com rei, rainha, dama de companhia, dama da boneca, porta-estandarte, porta-lanterna, o carregador do elefante e o ogan (batuqueiro do maracatu) com sua alfaia.
Tem também as alegorias: o elefante, o guarda-sol, o estandarte e a lanterna. A estátua da rainha foi feita em homenagem a dona Santa, mulher negra que foi rainha do centenário Maracatu Elefante.
Esse foi o percurso do roteiro Circuito Afro do Olha! Recife:
Outros lugares ligados à cultura negra no Recife
Uma ótima forma de conhecer lugares ligados à história e cultura do povo negro no Recife e em Olinda é fazer uma das caminhadas do projeto Pernambuco Negra (@pernambuconegra no Instagram), que faz parte das caminhadas do Guia Negro e é realizado pelo pessoal do Afoxé Alafin Oyó. Fiz a versão do roteiro em Olinda e adorei.
Além dos lugares visitados no passeio, muitos outros merecem fazer parte dessa lista. Pensei em mais alguns para incluir aqui, e os comentários estão abertos para quem quiser acrescentar mais recomendações.
Mercado de São José
O Bairro de São José, onde fizemos o percurso acima, guarda muitos outros símbolos da cultura negra no Recife. No século XIX, essa região abrigava vários terreiros, e também surgiram ali dezenas de grupos de maracatu e samba.
Por ali, outro ponto que vale ser visitado é o Mercado de São José, que na minha opinião é o mercado público mais legal da cidade. Ele vende desde artesanato a comida e fica num prédio bonito, construído em 1875 numa arquitetura de ferro inspirada no mercado de Grenelle, em Paris.
Mas o mercado foi incluído no roteiro porque é considerado referência para praticantes de capoeira e de religiões de matriz africana, porque nele e nos seus arredores tem várias lojas que vendem objetos e ervas para os rituais.
Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro
Também localizado na região central da cidade, mas no Bairro do Recife (Recife Antigo), o Museu de Artes Afro-Brasil Rolando Toro tem um acervo permanente com esculturas africanas cedidas pelo antropólogo chileno Rolando Toro, criador do “Sistema Biodança” nos anos 60.
O museu também promove várias oficinas, debates, saraus poéticos e aulas de artes africanas e afro-brasileiras. Nos últimos meses, por exemplo, rolaram oficinas de música e dança, rodas de conversa sobre estudos de gênero, apresentação de um coral afro-brasileiro de mulheres… A programação costuma ser publicada na fanpage do museu.
Museu da Abolição
Localizado no bairro da Madalena, o Museu da Abolição tem como missão “preservar, pesquisar, divulgar, valorizar e difundir a memória, os valores históricos, artísticos e culturais, o patrimônio material e imaterial dos afro descendentes, por meio de estímulo à reflexão e ao pensamento crítico, sobretudo quanto ao tema abolição, contribuindo para o fortalecimento da identidade e cidadania do povo brasileiro”.
Além do acervo permanente e de uma biblioteca especializada, o museu promove exposições temporárias e cursos relacionados à história afro-brasileira. Dá para acompanhar a programação pelo Instagram. A entrada é gratuita.
Terreiros
Não dá para falar em cultura negra no Recife e não mencionar os terreiros, né? Já falei aqui no blog sobre o Terreiro Obá Ogunté, mais conhecido como Sítio de Pai Adão, que fica no bairro de Água Fria. Tombada pelo Governo de Pernambuco, essa é a mais antiga casa de culto Nagô do Estado e uma das mais veneradas do Brasil. Fui lá num tour de turismo comunitário e adorei a experiência.
Se tiver interesse em conhecer esse e outros terreiros por aqui, vale entrar em contato com a Rede Articulação Caminhada dos Terreiros de Pernambuco. A organização costuma fazer uma caminhada todo mês de novembro, mas acredito que também dá para conseguir mais informações e contatos com eles através da fanpage do projeto.
Você tem sugestões de outros lugares importantes para a cultura negra no Recife que podem ser visitados pelo público? Me conta nos comentários.
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2 Comentários
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Oi, Luisa. Tudo bem? :)
Seu post foi selecionado para o #linkódromo, do Viaje na Viagem.
Dá uma olhada em http://www.viajenaviagem.com
Até mais,
Bóia – Natalie
Eu gostei muito mesmo dos menus janelas abertas