Descolonizar o turismo: precisamos refletir sobre isso
Você já pensou sobre a importância de descolonizar o turismo? Talvez essa expressão não fique muito clara, então vou reformular. Já parou pra pensar que suas escolhas sobre pra onde viajar e o que fazer nos destinos, assim como sua interpretação das culturas que conhece, provavelmente são influenciadas por uma visão de mundo eurocêntrica? E que nossa forma de agir como turistas, pensando só na nossa própria satisfação, reproduz uma lógica parecida com a dos colonizadores?
Por exemplo, quando a gente privilegia destinos no Norte Global, tipo Europa e Estados Unidos, e idolatra tudo que encontra lá. Ou quando visita outros países porque os considera “exóticos” e, durante a viagem, fica mais interessado em curtir praias e festas, reclamar de problemas estruturais ou reforçar preconceitos que em entender a cultura local.
Outro exemplo é quando a gente acredita que, por estar pagando, tem direito de ser tratado como membro da realeza. E quando, especialmente ao visitar destinos mais vulneráveis, não paramos pra nos questionar: qual será o efeito da minha presença nesse lugar?
Um pequeno flashback
Mas antes de falar sobre descolonizar o turismo, vamos relembrar aquelas colonizações de algumas centenas de anos atrás? Tipo no período das Grandes Navegações, quando europeus atravessaram oceanos pra “descobrir” lugares.
Ao chegar numa terra estrangeira, geralmente esses homens brancos descreviam os habitantes nativos como bárbaros ou selvagens. E logo se dedicavam a invadir o território, roubar seus recursos naturais, escravizar o povo e catequizá-lo. Ah, sem falar nas doenças trazidas de além-mar, que dizimaram populações nativas.
Você pode estar pensando: “ah, é óbvio que tudo isso foi ruim. Qual a novidade aí?”. Mas às vezes acho que a gente não internalizou, ou não leva suficientemente a sério, o quão grave foi esse comportamento e como ele ainda reverbera.
Por exemplo, até hoje não são raras as estátuas que homenageiam os colonizadores, retratando-os como heróis. Monumentos que muitas vezes fotografamos nas nossas viagens, sem questionar o que significam. E que continuam sendo construídos não só nos países que se gabam pelos seus “heróis aventureiros”, mas até mesmo em terras colonizadas – como essa estátua de Cristóvão Colombo inaugurada em pleno 2016 em Porto Rico.
Seguimos absorvendo muitas ideias que interessam à galera que nos colonizou. E, enquanto viajantes, muitas vezes agimos com uma mentalidade parecida com a daqueles homens brancos europeus que aportaram por aqui em 1500, ainda que numa escala distinta.
Descolonizar nossa visão de mundo
Tá certo que Portugal não manda mais na gente há um tempo, e muitos outros territórios mundo afora deixaram de ser colônias. Mas quem disse que essa época ficou pra trás? A influência dos países do chamado Norte Global (que talvez você conheça como “desenvolvidos”) continua muito presente, tanto politicamente quanto econômica e culturalmente.
Afinal, eles enriqueceram com base na exploração de terras na América, Ásia e África e não pararam de nos explorar até hoje. Ainda assim, adoramos visitá-los e nos impressionar com sua beleza ou modernidade, raramente nos lembrando que boa parte disso foi construída com base no que tiraram de nós.
Mas é claro que vamos ter como referência os europeus e norte-americanos (que mais recentemente dominaram boa parte do mundo com seu imperialismo cultural e econômico). Afinal, temos absorvido esse discurso etnocêntrico há séculos, inclusive nos relatos de viagens.
Como observou Bani Amor em um artigo da Bitch Media (fora do ar atualmente) em que cita o crítico literário Edward Said, os relatos de observadores europeus sobre os territórios “conquistados” por eles naturalizaram um ponto de vista eurocêntrico sobre o mundo. Foi a partir dessa visão que se construíram nossas percepções do que significa o Oriente, por exemplo, com discursos que colocam o comportamento europeu como superior.
No livro Sobre a Arte de Viver, o autor Roman Krznaric também fala sobre o assunto: “Os manuais escolares representam tipicamente os exploradores sob uma luz heroica: Cristóvão Colombo, Fernão de Magalhães, Francis Drake, segundo eles, foram aventureiros e descobridores que arriscaram a vida para preencher os espaços em branco em nossos mapas, expandindo a imaginação geográfica do mundo. No entanto, apesar de todas as associações românticas, há um lado mais obscuro a revelar, visto que a história das explorações é inseparável da história do racismo. Desde os conquistadores hispânicos das Américas até as expedições coloniais à África, no século XIX, os exploradores se uniam numa crença muito difundida de que as cultura que encontravam eram inferiores às deles”.
E como diz esse ótimo texto de Martha Lopes sobre descolonização cultural, se nos perguntarmos o que andamos lendo e assistindo, que tradições seguimos e quem nos disse que isso era importante, vamos encontrar referências predominantemente europeias e estadunidenses.
Mas e os valores dos povos originários, que habitavam nosso país antes da chegada dos colonizadores? E os dos povos africanos, fundamentais pra formação do nosso país? Foram apagados, ou considerados menos importantes.
“É como se a cultura e a história que chegassem até nós e se apresentassem como oficiais – na educação, nos livros, nas peças, nos filmes e na mídia – tivessem sido construídas majoritariamente por uma só parcela de pessoas, invisibilizando e deixando de fora outras tantas perspectivas”, diz Martha Lopes.
Pra descolonizar o turismo, acredito que precisamos primeiro descolonizar nosso olhar do mundo. Podemos fazer isso sem sair de casa, diversificando nossas fontes de conteúdo e nos reaproximando das nossas raízes culturais.
Descolonizar nossa postura como viajantes
Outro ponto que também justifica a necessidade de descolonizar o turismo é nossa postura enquanto viajantes. Que, como mencionei, muitas vezes se parece um bocado com aquela atitude de “vou chegar nesse lugar estrangeiro e tirar dele tudo que me interessa”, como a galera que aportava em caravelas.
Pra começar, viajar a lazer, especialmente pra o exterior, exige uma série de privilégios. Envolve fatores como condições financeiras, uma estrutura que garanta o cuidado de parentes enquanto estamos longe, acesso à informação e permissão pra entrar em outros países (o que, por questões geopolíticas, é muito difícil pra cidadãos de várias nações).
Mesmo quem viaja de forma super econômica está se beneficiando de um sistema de desigualdades, ainda que obviamente não seja nossa culpa individual. Por isso, precisamos estar conscientes do que significa ter o privilégio de viajar, enquanto as pessoas que nos recebem muitas vezes jamais terão condições de ir além de suas cidades de origem.
Ignorar esse privilégio pode levar à ideia de que temos o direito de viajar e não podemos ouvir “não”. Ou que, por estarmos pagando pra estar ali, merecemos ter todas as nossas vontades satisfeitas.
Sim, eu sei que você provavelmente trabalha muito o ano inteiro e sente necessidade de, nas férias, relaxar e desconectar. Mas infelizmente, não dá pra abrir mão das responsabilidades e perder o senso crítico.
Quando viajamos, visitamos o lar de outras pessoas. E é preciso entender que aquela cidade ou país não existe só pra nos satisfazer. Afinal, pessoas não são meros prestadores de serviço e lugares não são produtos.
“Nos sentimos no direito de receber sorrisos de estranhos, uma boa xícara de café, não ter nossos sentimentos magoados, encontrar máquinas de cartão de crédito, fazer farra de forma imprudente, tomar banhos quentes, ter tudo acontecendo pontualmente e encontrar tudo disponível em inglês. Talvez seja a mentalidade colonial do passado, talvez seja a mentalidade colonial de hoje. Me conte você”, diz Julia Falco nesse ótimo artigo (tradução minha).
Como observa Rob Gordon no livro Going abroad: traveling like an anthropologist, será que viajar em busca de lazer e aventuras, sem se preocupar com a cultura e a preservação do ambiente que visitamos, não se assemelha muito ao tempo em que os colonizadores viajavam em busca de ouro ou escravos? O foco, afinal, é obter algo que nos interessa, sem saber o que os moradores do lugar pensam sobre nossa presença e comportamento.
Por que achamos normal, quando viajamos, recebermos mais do que damos em troca? Por que nem sempre paramos pra entender o contexto do lugar onde fica aquela praia paradisíaca ou aquela “maravilha da humanidade”?
Da mesma forma em que um lugar pode nos transformar, nós também o transformamos – e frequentemente pra pior.
Descolonizar a exploração do turismo
Uma das grandes ilusões em relação ao turismo de massa é que ele é benéfico pra os destinos porque traz grandes aportes financeiros pra população local. Infelizmente, nos países do Sul Global isso geralmente não é verdade.
De acordo com esse artigo, estudos mostram que a cada 100 USD gastos por um turista de férias em um país “em desenvolvimento” só 5 USD ficam com a comunidade anfitriã.
E pra onde vai o resto do dinheiro? Restaurantes, hotéis, companhias aéreas, tours etc. que pertencem a empresas estrangeiras. Ou seja: mesmo quando visitamos uma comunidade que precisa muito do nosso dinheiro, boa parte dos nossos gastos pode estar, na verdade, beneficiando a elite daquele país ou dos países mais ricos do mundo.
Enquanto isso, os moradores do lugar podem ser prejudicados de diversas formas. Um exemplo é quando falta água num destino porque turistas usam esse recurso em excesso nos hotéis (já que piscinas, banheiras, irrigação de jardins e lavagem frequente de lençóis e toalhas gastam muita água).
Sem falar na inflação dos preços, que torna aluguéis, produtos e serviços muito caros pra população local. Poluição, superlotação de espaços, barulho em horários inadequados e privatização de praias também são impactos comuns que prejudicam quem mora em destinos turísticos.
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O que é overtourism: problemas do turismo de massa
Vale ressaltar que essas pessoas muitas vezes não têm opção. Quando um lugar se torna economicamente dependente do turismo, fica difícil colocar um limite na exploração da mão de obra, do meio ambiente e dos espaços físicos.
“Se as comunidades não têm a soberania ou autodeterminação necessárias para determinar como elas querem que suas culturas sejam consumidas ou comunicadas, como suas economias sejam governadas e como seus ambientes sejam tratados, então a cultura do turismo é só uma continuação de práticas imperialistas”, conclui esse texto de Bani Amor (tradução minha).
Como ajudar a descolonizar o turismo?
“O mindset colonial foi responsável pela maior parte do sofrimento humano no planeta, de escravidão a genocídio e dominação. Se nossa cultura de viagens atual não se basear na meta de ir contra esses males, então ela está indo a favor da agenda colonial”, resume esse artigo da Yes Magazine (tradução minha).
É claro que não cabe a nenhum de nós, individualmente, carregar o peso de todos os males do mundo. Eu ou você, sozinhos, não conseguiremos resolver contradições tão complexas a ponto de descolonizar o turismo.
Mas acredito que isso não nos exime da responsabilidade de encarar nossas viagens de uma forma mais questionadora, entendendo as implicações políticas, econômicas e sociais do turismo de massa.
Escolher ignorar nossos impactos e o papel da justiça social nas viagens é, de certa forma, se tornar cúmplice de um sistema opressor que reproduz uma lógica colonizadora.
Por mais que nós brasileiros tenhamos sido colonizados, existem países em condições socioeconômicas tão ou mais complicadas que nós. E fazer parte de uma bolha da sociedade que pode viajar a lazer nos coloca em uma posição de responsabilidade. Especialmente se você fizer parte de grupos privilegiados, como eu faço por ser branca, heterossexual e de classe média, por exemplo.
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Acredito que algumas atitudes importantes pra nos encaminhar a um processo de descolonizar o turismo são nos conectar com pessoas locais, entender a complexidade das questões sociais e econômicas que afetam aquele destino e nos esforçar ao máximo pra respeitar a cultura e o ambiente que visitamos.
Além disso, é importante tentar deixar dinheiro com a comunidade local, procurar operadores de turismo responsáveis, ter consciência sobre nosso lugar de privilégio e rever nossas expectativas em relação à forma em que esperamos ser tratados. E, sempre que possível, conversar sobre como as relações de poder que regem nossa sociedade se manifestam no universo de viagens.
Também me parece essencial conhecer e valorizar nossas raízes, pensar em cultura além dos cânones europeus e questionar o que entendemos por turismo. Afinal, viajar pode ser infinitamente mais que visitar museus, lojas, resorts, monumentos e parques de diversões.
Se percorremos nosso próprio país e o mundo em busca de conexões reais com outros seres humanos e nos esforçarmos pra encarar o mundo além do prisma eurocêntrico e americanizado que nos é imposto todos os dias, acredito que chegamos mais perto de um turismo que realmente provoque um impacto positivo.
Por fim, trago uma reflexão de Anu Taranath no livro Beyond Guilt Trips: Mindful Travel in an Unequal World: “Se ignorarmos a história ou o impacto da história nas nossas identidades presentes e imaginarmos que somos indivíduos livres do passado, simplesmente reproduzimos um gesto colonial. Se, pelo contrário, compartilhamos nossas experiências sobre como as conexões entre passado e presente afetam nossas viagens e como estamos situados em sistemas de oportunidade e adversidade, começamos a refletir uma postura descolonizadora. Você pode decidir que tipo de viajante quer ser”.
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10 Comentários
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Luisa, obrigada pela reflexão- pelas tantas! Amo viajar, hoje em dia me preocupo em ir com uma postura empática sobre o lugar e as pessoas, mas esses questionamentos fazem pensar além. Adorei!
Que massa, Camila! Obrigadíssima por esse feedback :) Me questionar sobre isso e tantas outras coisas tem sido transformador pra mim; o mínimo que posso fazer é compartilhar! Um abraço :)
Esse foi um texto que me abraçou! Eu sinto exatamente isso no meu desejo de conhecer lugares. Gosto de conhecer a realidade e não o que foi criado para ser consumido turisticamente. Que bom ler esse texto. Gratidão!
Que massa, Bruna! :) Amei poder dar esse abraço virtual aí do outro lado da tela, haha. Eu que agradeço pelo comentário! <3
Lu,
Sensacional sua reflexão e análise. Venho pensando muito sobre tudo isso já faz um tempo e tenho tentado avaliar o meu impacto durante as viagens e refletido sobre o que posso fazer para diminuir ele; Senti isso especialmente quando visitei a região de Sapa no Vietnã e pude ver como as comunidades locais passaram a viver exclusivamente do turismo e a perder totalmente sua identidade e costumes. Enfim, obrigada pelo texto maravilhoso de sempre
Abraços
Que massa que vc curtiu, Liany! :) É realmente complicado quando acontece isso que vc mencionou, e infelizmente muito comum, né? Acho que temos que rever muita coisa em nossa sociedade, como a busca por um crescimento e produtivismo sem limites, pra evitar esse tipo de fenômeno… Um abraço!
Adorei essa reflexão, estou tentando diversificar e conhecer mais sobre minhas origens e irei aplicar fortemente em minhas viagens. Seus textos são excelentes e esclarecedores. Obrigada pela partilha
Que alegria esse comentário, Monielle! Muito obrigada pelo comentário! :) Boa sorte nessa jornada. Que te traga muito aprendizado :)
Parabéns por mais um ótimo texto, repleto de reflexões construtivas, e por tantos outros textos repletos de sabedoria.
Ahh que massa que você gostou, Paula! Muito obrigada pelo feedback <3 Se tiver interesse em se aprofundar mais nesses temas, sugiro dar uma olhada no meu livro. Acho que você vai curtir :) https://janelasabertas.com/livro/