Como não se tornar finlandesa em dois dias
“A gente não podia ir num barco a motor? Eles estão nos fazendo aprender sobre ‘sisu’ na prática”, brincou Moustafa, meu amigo egípcio, enquanto remávamos nossos caiaques pra chegar até a ilha onde passaríamos a noite, no meio do maior lago da Finlândia.
Sisu, palavra sem tradução exata pra outros idiomas, é considerada por muitos a melhor definição da personalidade finlandesa. O termo se refere a uma “força interior”; uma espécie de determinação acima do normal pra lidar com as adversidades.
Só com muito sisu, afinal, pra um povo sobreviver aos longos e severos invernos lá de cima e ainda ser o mais feliz do mundo (foi a ONU que falou, então deve ser verdade, né?).
Essa tal de cultura finlandesa
Felizmente, visitei a Finlândia no verão. Eu, Moustafa e mais 14 jornalistas das Américas, Ásia e África fomos passar três semanas no país a convite do Ministério das Relações Exteriores finlandês, que queria nos apresentar à terra do Papai Noel.
Aprendemos sobre educação de excelência, transparência das instituições públicas e mais uma porção de coisas interessantes. Mas ali, remando desajeitadamente no lago Saimaa, nossa maior preocupação era apenas chegar sãos, salvos e secos ao pedaço de terra que abrigava o chalé onde passaríamos a noite.
O que não seria uma tarefa tão complicada, não fossem dois detalhes. Primeiro: só duas pessoas do grupo já tinham estado num desses veículos aquáticos antes. Prova irrefutável, é claro, de que a tendência de jornalistas preferirem mesas de bar à prática de esportes é mundial.
Segundo detalhe: o senhor que sabia pra que direção deveríamos ir tinha ficado pra trás, ajudando duas colegas a lidar com uma particular falta de habilidade com os remos. E ali, no meio de um lago com mais de 4 mil km², não era exatamente fácil dar instruções geográficas (alguém aí sabe como se diz “vire à esquerda na próxima ilha” em finlandês?).
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Enquanto algumas pessoas começavam a se incomodar com a falta de rumo e chocavam-se como carrinhos de bate-bate, eu sorria feito boba, agradecendo a Papai Noel e todos os seus duendes pela sorte de estar ali.
Olhava pra aquele montão de água rodeado de densas florestas e tentava imaginar essa paisagem no inverno, quando o lago fica tão congelado que dá até pra atravessá-lo de carro. Me visualizava num trenó, sendo puxada por huskies, com flocos de neve caindo e a aurora boreal brincando no céu ao fundo. Resumindo: me sentia num vídeo de divulgação turística.
Até que voltei à realidade. Infelizmente, fui motivada não pela chegada do nosso guia, mas por uma das piores coisas que podiam acontecer pra quem está presa num caiaque no meio do nada, ouvindo barulho de água o tempo inteiro: uma enorme vontade de fazer xixi.
Não sei quanto tempo se passou nessa espera, porque guardei o celular depois de quase afoga-lo tirando uma selfie. Mas, na relatividade que acomete os que têm necessidades fisiológicas reprimidas, pareceram milênios. “Foco no sisu”, sugeriu Moustafa, rindo do meu desespero. Tentei, mas não adiantou. Meu único consolo era pensar que pelo menos não era o número 2.
Felizmente, um pouco antes de sucumbir aos desmandos da minha bexiga (o que certamente renderia uma ótima história pra o pessoal do Ministério contar nas próximas edições do programa), as meninas se aproximaram.
Cansadas e molhadas, elas tinham sofrido um pequeno acidente, mas conseguiram nos alcançar. Com elas, veio o tal senhor que nos indicaria o caminho até nossa ilhota. Depois de mais umas remadas (desesperadas, no meu caso), chegamos à terra firme. E ao banheiro!
O “esporte” nacional
Ter uma cabana à beira de um lago na Finlândia pode parecer sofisticado, mas não é exatamente um luxo. Afinal, o país tem mais de 70% do seu território coberto por florestas e quase 190 mil lagos.
Além de não faltar espaço, a estrutura das casas costuma ser simples, sem água encanada e com eletricidade limitada. Claramente, tudo planejado pra incentivar uma boa exercitada no sisu.
No lugar onde nos alojaríamos não era diferente: no meio do mato, três pequenas casas de madeira abrigavam beliches e nada mais. O espaço incluía ainda dois banheiros secos, uma casa maior com cozinha e sala de jantar e mais uma onde ficava – é claro – a sauna.
Sim, porque os finlandeses não só inventaram a sauna, como têm uma verdadeira obsessão por essa história de ficar sentados (geralmente pelados) num lugar pequeno e quente, suando seus 70% de água corporal.
Tem sauna nas casas, em empresas, no meio das cidades, nas embaixadas da Finlândia em outros países e até em arquibancadas de estádios de hockey e cabines de rodas-gigantes. Mas a rainha de todas as saunas é como aquela ali: à beira de um lago, junto de um chalé.
Porque enquanto nós brasileiros costumamos ter como ideal de verão perfeito uma sucessão de dias à beira-mar com uma cerveja ou caipirinha gelada na mão, pra os finlandeses o negócio é bom mesmo quando eles podem ficar alternando sauna-lago-sauna-lago-sauna-lago em looping até cansar.
No inverno, aliás, eles fazem basicamente a mesma coisa, com a diferença de que o lago tá congelado e a graça é pular num buraco no gelo. Ou rolar na neve. Ou alguma outra sandice envolvendo choque térmico que eles insistem em dizer que faz bem pra saúde.
Recife, é você?
Como a ideia do passeio era promover uma imersão na cultura finlandesa, não me restava muita opção senão seguir a tradição. Proposta que normalmente me deixaria animadíssima, não fosse o fato de que eu já tinha ido numa sauna em Helsinque, poucos dias antes, e não tinha curtido muito.
O que, preciso confessar, é um eufemismo. Na verdade eu detestei aquele troço.
Pra começar, achei meio constrangedor ficar sentada tão perto de pessoas aleatórias enquanto todos “suávamos bicas”, como se diz por aí (cachoeiras, rios ou oceanos seriam termos mais apropriados). Além disso, o vapor me parecia sufocante.
Se fechasse os olhos, eu tinha certeza de que não estava na Finlândia, mas sim na minha cidade natal, conhecida carinhosamente como Hellcife, saindo da praia e entrando num carro que havia ficado estacionado sob o sol durante horas numa tarde de janeiro.
“POR QUE DIABOS alguém passaria por isso por livre e espontânea vontade? Só se for coisa do diabo mesmo, porque certamente essa é uma reprodução do inferno”, gritou uma voz na minha cabeça. “Acho que sauna não é muito minha vibe”, disse minha voz real, tentando não ofender meus anfitriões.
Ainda assim, alguma coisa naquela atmosfera idílica do lago Saimaa, com o crepúsculo pintando o céu de laranja às 22h30, me fez topar a experiência novamente.
Talvez tenha sido a queda de temperatura, que não chegava nem perto dos níveis invernais que o país enfrenta, mas tornava o calor da sauna um pouco mais atraente. Talvez tenham sido as latas de Original Long Drink (bebida típica à base de gin) que tomei depois do jantar. Ou talvez o sisu tenha tomado conta de mim, me encorajando a enfrentar a adversidade sob a forma de 90ºC e muito, muito vapor.
Só sei que entre divertidas conversas e um peculiar ritual em que fui chicoteada pelos ramos de uma planta chamada vihta pra estimular a circulação, a imersão cultural aparentemente foi bem sucedida.
Quando me dei conta, já estava no looping sauna-lago-sauna-lago-sauna-lago e pensando: até que se o inferno for assim, não tá tão ruim.
Escassez de pecados
No dia seguinte, fui fazer outra atividade-finlandesa-de-verão por excelência: colher frutinhas na floresta. De julho a setembro, os bosques se enchem de bolinhas comestíveis de diferentes cores, com nomes como blueberries, bilberries, cloudberries e lingonberries.
E é aí entra outro hábito que diz muito sobre a relação que os finlandeses têm com a natureza. Muitas pessoas, mesmo em grandes cidades, têm a tradição de colher os frutos em família e, depois, congelar uma parte e fazer geleia com o resto. É tipo sentar pra ver o Fantástico com os parentes no domingo, sabe? Só que totalmente diferente.
Ah, e tem mais: se por acaso você não estiver em casa durante o verão, ou se tiver preguiça de ir colher os frutos do seu quintal, sem bronca. Se houver alguém por perto, a pessoa pode muito bem entrar na sua propriedade sem autorização pra dar destino às suas berries.
Isso por causa de uma palavrinha bem fácil de pronunciar (só que não): jokamiehenoikeus. Ela significa “direito de todo homem” e determina que é permitido caminhar, esquiar, pedalar, acampar, nadar, pescar e colher flores, frutos e cogumelos em praticamente qualquer lugar do país, incluindo áreas privadas.
“E a colheita deu certo?”, você pergunta? Considerei que sim, já que fiquei com mãos roxas e barriga cheia. Mas enquanto enchia um saco de blueberries, não pude deixar de pensar em como deve ser sem graça crescer roubando frutas do quintal do vizinho sem ser proibido. Vai ver é por isso que os finlandeses recorrem à sauna-inferno: têm poucos pecados a pagar.
Missão mais ou menos cumprida
A última atividade do passeio era outra tradição comum por essas bandas, nada surpreendente tendo em vista a quantidade de água: sair pra pescar. O que sempre me pareceu uma das coisas mais entediantes do mundo. Só que a essa altura, você deve imaginar que aprendi minha lição e lembrei que vale a pena dar uma segunda chance pra as experiências, né?
Eu podia fingir que foi isso aí, mas o que me convenceu mesmo foi o convite de Moustafa: “vamos contrabandear umas latas de Original”. Corta a cena e eu apareço sentada com ele na frente do barco, no meio do lago. Que, aliás, parecia ainda mais lindo que no dia anterior – talvez devido ao fato de que dessa vez minha bexiga estava vazia.
Infelizmente, nesse caso o espírito finlandês não baixou em mim. Depois de uns 20 minutos segurando a vara de pescar, percebi que ficar sentada só bebendo e batendo papo tem mais a ver comigo. Deixei que um peixe roubasse a isca, larguei a vara num canto e me contentei em tirar fotos dos amigos com seus peixes-troféus.
Entre um gole e outro de gin, Moustafa e eu filosofamos sobre a vida, rimos muito e chegamos à mesma conclusão: que sisu, que nada. Adoramos a Finlândia, mas gostamos é de vida boa mesmo.
Este texto foi escrito como exercício da oficina Narrativas de Viagem da jornalista Gaía Passarelli.
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