Gordofobia em viagens: entrevista com Polly do “Viaja, Gorda”
Não caber no box do chuveiro do hotel ou no assento do avião, ter dificuldade pra subir no beliche num albergue e receber olhares de julgamento na praia. Esses são alguns dos problemas que uma pessoa gorda pode enfrentar viajando, já que os espaços raramente estão preparados pra acomodar todos os tipos de corpos. Por causa da gordofobia em viagens, infelizmente muitas pessoas encaram o ato de viajar como algo traumático. Mas é possível mudar isso.
“A gente ouve muito, principalmente nós gordes, que não podemos ou não conseguimos fazer algumas coisas. E isso gera traumas, medos, mas que podem ser ultrapassados com informações e apoio”, diz Pollyane Marques, 35 anos, no seu perfil do Instagram, Viaja, Gorda.
Criado no início de 2019, o perfil é usado pela jornalista Polly (como é mais conhecida) pra compartilhar reflexões sobre gordofobia em viagens e dicas gerais sobre turismo.
Acho o trabalho dela de extrema importância tanto pra pessoas gordas, que encontram ali informações e encorajamento valiosos, quanto pra as não gordas, que precisam conhecer outras perspectivas e se aliar à luta pelo fim da gordofobia em viagens (e em todas as outras dimensões da vida).
Com um olhar feminista e acolhedor, essa mineira radicada em Brasília traz desde conselhos práticos, como usar talco em creme pra não ter assadura nas coxas, a reflexões sobre a importância de exigir seus direitos. Afinal, se um lugar não está preparado pra lhe receber adequadamente por causa do seu corpo, o problema está nele, e não em você.
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Na entrevista a seguir, Polly compartilha histórias e reflexões sobre sua relação com viagens, com seu corpo e com a luta contra a gordofobia e o machismo.
Os trechos entre aspas espalhados pelo artigo foram retirados de legendas do perfil dela no Instagram, Viaja, Gorda. As fotos que ilustram o post pertencem todas a Polly e foram cedidas pra publicação aqui.
Qual sua história com viagens?
Quando criança, eu fazia pouquíssimas viagens, geralmente só ia até a cidade vizinha com a mãe ou o pai para resolver alguma coisa deles, mas me lembro de ficar sentada na janela, de dar nomes aos animais que via. Na adolescência, comecei a viajar sozinha para visitar meu irmão e também vim pra Brasília visitar meus tios.
Mas na primeira viagem que foi o start pra mudar as coisas em mim e me ver como viajante eu já tinha 21 anos. Fui pra São Paulo de avião, a turismo, sem ser para me hospedar com conhecidos e tal. Foi uma grande aventura com direito a cair na Paulista durante a Parada do Orgulho Gay (se chamava assim na época), que eu nem sabia que existia. E também hospedagem em um hotel que, na real, funcionava como motel.
Hoje, viajar é meu lazer predileto e passo muito tempo pensando nisso e em como viabilizar mais viagens.
Como foi sua relação com seu corpo durante a vida e como ela é hoje?
Aprendi a odiar o meu corpo logo cedo. Nasci uma criança super gorda e cresci assim. Então, ainda na infância aprendi que tinha que restringir certos alimentos se eu não quisesse: morrer cedo ou ficar uma baleia o resto da vida ou não arrumar ninguém pra casar comigo por eu ser gorda. E como uma criança que ouve isso pode ter uma relação saudável com algo?
Na adolescência, entrei em um processo bulímico, perdi muito peso e fiquei assim até os 22. Fui magra de aparecer os ossos do pescoço e quadril, mas nunca fui tão infeliz e insegura. Voltei a ganhar peso, continuei me odiando e quase fiz uma bariátrica.
Em 2016, a ficha caiu: eu me apaixonei perdidamente por alguém com um corpo muito parecido com o meu (até então eu só me relacionava com gente ”padrão”) e comecei a me questionar sobre os motivos de eu amar aquela pessoa, com aquele corpo e me odiar.
E aí foi que fui me permitindo me conhecer melhor, vendo minhas capacidades, qualidades… e descobri em mim o meu amor mais potente.
“Pode ser de biquíni, maiô, short e top, camisetão, até calça tá valendo. O que não pode é você deixar de viver uma experiência gostosa por conta de não se sentir bem no que acham que deve ser libertador para você. Você sabe o seu limite, você sabe o que você quer usar, você sabe o que te liberta” – Pollyane Marques
Por que você criou o Viaja, Gorda?
O perfil nasceu de duas motivações: a primeira foi que estava num estágio complicado da depressão (tenho depressão fisiológica crônica, eu praticamente não tenho um dos elementos químicos que é necessário para nosso controle de humor) e minha psicóloga achava que eu precisava fazer algo que eu considerasse útil para me distrair, ocupar a cabeça e colocar pra fora o turbilhão de coisas que passavam pela minha cabeça.
E a outra foi que já tinha tido problemas em viagens por falta de informações voltadas para o meu corpo. Já quase não coube num box de chuveiro em Portugal, já optei por subir mais de 500 degraus da Cúpula do Vaticano porque não encontrei informações de que era um lugar extremamente sufocante para quem tem um corpo maior, entre outras questões.
Então resolvi juntar a habilidade de escrever e apurar informações com a necessidade de levar essas informações para pessoas como eu e também fazer algo útil.
Que tipos de desafios as pessoas gordas costumam enfrentar viajando?
Para um viajante inexperiente, podem existir inúmeras armadilhas, pois não há informações disponíveis de acessibilidade, por exemplo. Então uma pessoa gorda que vai viajar pela primeira vez talvez não saiba que ela pode pedir um extensor do cinto do avião, ela não sabe que tem que ligar no hostel e pedir a cama de baixo do beliche, que talvez seja bom conferir as medidas de abertura do box do chuveiro, saber se o acesso àquele lugar só é por escadas ou tem elevador…. Muitos não sabem que não precisam passar em catracas e que podem usar a mesma passagem para cadeira de rodas etc.
Você pode compartilhar situações difíceis que enfrentou devido à gordofobia em viagens?
Acho que o meu problema mais icônico foi num hotel em Portugal, onde a abertura do box era tão, tão pequena que eu, para conseguir tomar banho, tive que passar a metade do corpo (me esfolando pelo vidro), depois me virar e fazer a mesma coisa do outro lado.
Eu consegui reclamar pelo meu direito, mas já ouvi de muitas pessoas que a reação delas seria ir chorar no quarto e talvez não sair mais de lá.
“(…) levei anos para conseguir me deixar fotografar de corpo inteiro. E não é sempre que consigo ainda. E conheço outras tantas mulheres que passaram pelo mesmo processo. É horrível não ter um registro nosso naqueles lugares que a gente tanto quis conhecer. E hoje entendo que isso é consequência do que ouvimos a vida inteira: de que não somos bonitas, de que não merecemos estar ali, que nosso corpo gordo não é fotografável. E a solução que tenho encontrado para esse e outros bloqueios que tenho é me cercar da influência de mulheres reais, mulheres com corpos reais e que mostram que podemos tudo e que nosso corpo é lindo e merece estar estampado onde e como quisermos. E como sei que a gente vive em um mundo super opressor com a imagem, essa dica vale para gordas ou não, mulheres ou não” – Pollyane Marques
Qual a importância de ações no nível estrutural para que corpos fora do padrão não sejam mais oprimidos e excluídos?
Eu acredito que a gente precisa mudar toda essa estrutura machista e gordofóbica para que mais mulheres, gordas e não gordas, possam usufruir de suas vidas e de seus corpos com mais naturalidade.
Hoje todas as mulheres são ensinadas, desde pequenas, a odiarem seus corpos. Então todas passamos grande parte da nossa vida nos odiando, fazendo de tudo para mudar e corrigir as “imperfeições”.
E isso vai piorando muito quanto mais dissidente for teu corpo, porque aí não há uma estrutura na sociedade para te receber. A coisa passa de falta de amor próprio para falta de acessibilidade, falta de política pública. É como se nos espaços, elaborados para o sujeito padrão, estivesse implícito que todos os demais não são bem-vindos.
E aí você passa a negar transporte, saúde, educação, trabalho, lazer para uma gama de pessoas só porque os seus corpos estão “””fora do padrão”””. Você nega direitos básicos, constitucionais.
Enquanto isso não acontece, como você faz pra contornar a gordofobia em viagens num nível individual?
Acho que pra mim, hoje, já pouco é só num nível individual. Eu sempre penso que tudo que eu faço por mim eu preciso fazer pelas outras. Então vou tentando multiplicar todas as informações a que tenho acesso, tudo que experimentei e deu certo. Mas sempre deixo claro que foi a minha experiência e para as outras pode ser diferente, pra não gerar frustração e acabar piorando a coisa.
Pela sua experiência, existe diferença entre ser uma pessoa gorda viajando no Brasil ou em outros países?
Nos lugares onde já fui no exterior, os espaços eram menores: a cadeira do transporte público, o elevador. Mas raramente me senti olhada ou julgada. Talvez quando entrei em uma loja e o atendente não sabia o que fazer pra me dizer que lá nada me cabia… mas também não é esse tipo de viagem que procuro.
No Brasil, sinto os olhares pesados, principalmente em destinos de água: praia e piscina. Apesar da nossa variedade de corpos ser imensa, o povo acaba achando que ainda temos que nos colocar em uma caixinha.
O que me entristece é que dentro e fora do país muitas vezes vejo que sou a única gorda no lugar. E eu acho que isso tem um significado muito ruim: o corpo pode estar impedindo inúmeras mulheres de conhecerem coisas bacanas.
A gente sabe que há um problema estrutural: muitas das pessoas gordas, realmente gordas, têm baixa renda porque o acesso à educação e ao trabalho lhes são negados com frequência.
“É importante, antes de comprar os ingressos ou fazer qualquer pagamento [para uma atração “de aventura”], ter certeza que: no local tem roupa que realmente serve para o teu tamanho, que a atividade tem segurança para seu peso e que as pessoas estão preparadas para te atender. Se a atração não atender às suas expectativas não tenha vergonha, não é um problema teu. O prestador do serviço é que deveria estar preparado para todas as pessoas. Se conseguir, registre oficialmente sua reclamação. Isso serve para que os serviços entendam que existe uma demanda e previne que outras pessoas gordas passem pelo mesmo” – Pollyane Marques
Como você acha que o Instagram influencia a autoestima das pessoas gordas que pretendem ou gostam de viajar?
As redes sociais são facas de dois gumes, né? Da mesma forma que você tem gente super bacana, tentando fazer aquele conteúdo para de fato ajudar as pessoas, tem outros que fazem postagens muito egocêntricas, o que acho perigoso.
Acho que quem cria conteúdo precisa ter consciência de que aquilo será consumido de formas diferentes, por pessoas muito diferentes. É preciso criar conteúdo responsável de forma que você não frustre o sonho das pessoas, mostrando que aquilo é inacessível demais, ou frustre-as porque aquilo não é bem a maravilha que você postou.
Feita essa consideração, acho que podemos, sim, influenciar na auto estima de uma forma positiva, ajudando inclusive as pessoas a identificarem conteúdos que são tóxicos e se afastando deles.
Acho que às vezes é muito mais produtivo eu falar “mulher, deixe de seguir aquela pessoa que diz que teu corpo é um lixo e precisa ser assim ou assado” do que fazer um textão explicando formas de ela se amar.
Como tem sido a recepção do projeto?
Nunca tive haters, acho que isso é um bom começo… rs. E o projeto sempre foi bem recebido onde ele chegou, muitas viajantes não gordas hoje abraçam o “Viaja, Gorda” porque têm aprendido que as mulheres gordas têm muito mais potência do que muitos imaginam.
Tenho feedbacks desde as mulheres gordas que agora estão se vendo representadas ali, que falam que voltaram a sonhar em ganhar mundo, que falam de seus sonhos, medos… Até trabalhadores de empresas aéreas que disseram ter mudado seus comportamentos com as pessoas gordas depois que começaram a ler o conteúdo do Viaja.
São retornos muito bons. Que além da alegria, trazem consigo ainda mais responsabilidade: preciso cada vez mais criar conteúdos de qualidade, com o máximo de informação e verdade possível.
O que você diria pra mulheres gordas que querem viajar, mas se sentem inseguras, ou viajam e sentem que não conseguem aproveitar plenamente?
Primeiramente, perguntaria: viajar é o teu sonho? A gente sabe que o turismo tem sido vendido como artigo da moda e muitas pessoas se sentem “obrigadas” a consumi-lo. Se a resposta for sim, eu digo: vá e se importe com o seu bem estar em cada fase do processo de viajar, do planejamento até o desfazer das malas.
Nem sempre a gente aproveita tudo que queria em quase tudo que a gente faz, na viagem não seria diferente. Então, permita-se experimentar o melhor daquilo que o tempo deu pra fazer, o dinheiro conseguiu pagar… Viagem não precisa ser competição de mais lugares visitados e coisas feitas, viagem precisa ser prazer.
Pra saber mais sobre Polly e conversar com ela sobre gordofobia em viagens e sobre suas experiências pelo Brasil e pelo mundo, envie uma mensagem no Instagram Viaja, Gorda. Vale conferir também o perfil Fat Girls Traveling, em inglês.
E podemos continuar essa conversa nos comentários: você já sofreu ou testemunhou episódios de gordofobia em viagens?
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2 Comentários
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Que matéria incrível! Parabéns, Lu! Adoro seu blog e a forma simples e direta que você escreve. Sempre com conteúdos de muita relevância e abordando temas urgentes! Ansiosa por mais postagens! ❤
Sua lindaaaa! Brigada <3 <3 <3