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Travessia do Vale do Pati, na Chapada Diamantina: dia 1

Bahia | 17/12/18 | Atualizado em 25/12/18 | Deixe um comentário

“No Pati não tem internet, nem telefone. Mas tem comida boa, banho de rio e caipirinha”, alertou o guia. Eu tinha chegado a Lençóis, na Chapada Diamantina, há exatos quinze minutos. Fui direto da mini rodoviária pra sede da Chapada Adventure Daniel, onde conheci os outros turistas e um dos guias que me acompanhariam na travessia do Vale do Pati.

Chegando ao hostel, comi qualquer coisa, tomei banho e deitei, inquieta. O cansaço e enfado das sete horas de ônibus desde Salvador se chocava com a ansiedade pelo que vinha pela frente e não me deixava dormir. Como seria a tão esperada travessia?

Será que meus companheiros de caminhada seriam tão simpáticos quanto pareciam? Será que eu ia conseguir passar pelos cinco dias de trilha sem sofrimento? Será que estava levando menos ou mais coisas do que o necessário? Será que ia me machucar? Como seria passar uma semana “útil” inteirinha no meio do “nada”, desconectada da “civilização”?

E o que significa “útil”? Como assim “nada”, se ali certamente haveria tanta coisa em abundância? E de que “civilidade” estava falando, com notícias que nos dão vontade de chorar todos os dias? Eu sabia que a travessia do Pati seria metáfora. Mas só vivendo entendi.

Leia mais:

Travessia do Pati: tudo que você precisa saber antes de ir
Roteiro da minha primeira visita à Chapada Diamantina 

travessia do pati

Primeiro dia de travessia do Pati: minha experiência

A entrada no Vale

Às 8h da manhã da segunda-feira, eu estava de volta à sede da agência, onde deixei uma mochila pequena com os itens que não ia levar pra travessia. Saímos de carro até Guiné, distrito do município de Mucugê, a 85 km de distância, só com o essencial.

Parte da estrada era precária e o percurso levou mais de duas horas pra ser completado, com uma breve parada pra usar o banheiro de uma lanchonete.

Confesso que quando chegamos ao início da trilha, parte de mim queria continuar no carro. “Tem mesmo que seguir andando, né? Não dá pra fazer a trilha de carro?”, brinquei, entre preguiçosa e nervosa.

carro da chapada adventure daniel no início da trilha

Eram 11h30 e caía uma chuva fina. Ao descer do carro, logo nos apressamos pra vestir as capas de chuva em nós mesmos e nas mochilas e, pasmem, passar protetor solar (“o mormaço engana, mas queima”, avisou o guia Cleiton).

O outro guia, seu sobrinho Nelson, carregava uma alface num saco plástico pendurado na mochila lotada, arrancando risos pelo improviso.

Nos dias seguintes, eles preparariam nosso piquenique, mas nesse recebemos cada um sua sacolinha com o que seria o almoço do primeiro dia: dois sanduíches, uma banana, uma maçã, uma barrinha de cereais, um pacote de amendoim, um chocolate e um pacote de bolachinhas.

lanche do primeiro dia

Guardei meu lanche na mochila e gravei um vídeo pra o Instagram, falando que não estávamos com muita sorte por causa da chuva – estava preocupada em ter que caminhar por terrenos escorregadios.

Precisei de poucos minutos pra perceber que na verdade o clima nublado era bênção. Com sol na cabeça, teríamos muito mais dificuldade pra enfrentar, logo de cara, os dois quilômetros de subida no Morro do Beco.

E tome subida! “O que inventei de fazer?”, pensei, e me repreendi. “Deixa de ser mole, Luísa. A ideia era justamente a superação”, reforcei pra mim mesma, enquanto via todo mundo subir sem reclamar. Cinco dias depois, de volta a Lençóis, uma das participantes me confessou: tinha pensado o mesmo: “onde me meti?”.

início da trilha

A descoberta do caminho

Andamos sem parar até umas 12h30 trilhando um caminho antigo, da época do garimpo. Chegamos a um primeiro mirante e, como que em sincronia, o sol resolveu aparecer. Vamos olhar pelo lado bom: a vista pra os paredões da Serra do Esbarrancado estava mais limpa – e linda.

O primeiro marco no nosso caminho foi a desculpa pra descansar um pouco, reforçar o protetor, guardar as capas de chuva e absorver a paisagem ao redor.

primeiro dia da travessia do pati

Nesse ponto eu já começava a descobrir meu ritmo – mais lento que o dos demais, como eu previa. Mas ainda não tinha me dado conta da principal vantagem de ir devagar: passar mais tempo com aquela imensidão toda pra mim.

Por volta das 13h, paramos às margens do Rio Preto (que tem o mesmo nome de um monte de outros rios por ali e alhures – vamos trabalhar a criatividade nesse naming, pessoal!). Tirei o tênis, molhei os pés na água gelada e relembrei as tantas cachoeiras em que mergulhei no ano passado, entre Rio e Bahia, tão diferentes das águas quentinhas do mar com que cresci. Ganhei fôlego.

rio preto na travessia do pati

O sol tinha se escondido novamente, compadecido de nós. Na mistura do clima friozinho com a ansiedade do primeiro dia, ninguém quis tomar banho no rio, que parecia mais contemplativo que convidativo.

De barriga cheia, continuamos andando, cruzando os gerais do Rio Preto. Passamos, ali, pelos primeiros portões criados pra controlar a passagem das mulas que levam e trazem de um tudo pra dentro e fora do vale. E às 14h30, chegamos a outra recompensa: o Mirante do Pati.

portão na trilha

mirante do pati

“Agora é só descer!”, pensei, aliviada. Mal sabia que a descida da rampa que adentra o vale ia ser uma das partes mais desafiadoras do dia. Além de muito íngreme, ela tem pedras soltas e pede cuidado. Um bom lembrete, aliás, pra quem tem pressa de chegar. Pra não se esquecer de focar na única coisa que realmente existe: o presente.

Nesse primeiro dia, não visitamos nenhuma das principais “atrações” do vale, mas as paisagens foram variadas. Andamos por meio do capim-guiné, que dá nome ao distrito, e vimos muitas espécies da Mata Atlântica, principalmente quaresmeiras. Mal tinha começado o percurso e já fiquei com vontade de voltar, um dia, na Semana Santa, pra ver o vale florido, roxinho.

atravessando as gerais do rio preto

A chegada

Antes do início da travessia, me fiz uma promessa: não ficar perguntando quanto tempo faltava pra alcançarmos o destino do dia. Mas ficou difícil manter esse acordo comigo mesma quando a mochila, que somava uns 6 ou 7 quilos incluindo as garrafas d’água, ficou com a impressão de pesar três vezes mais.

Enquanto pensava no incômodo, olhei adiante e vi um homem sozinho, levando uma porta de madeira gigantesca. A encomenda, soubemos depois, ia pra casa de Dona Raquel, nosso ponto de apoio daquela noite.

Não conseguia entender como era possível que esse senhor tivesse enfrentado os mesmos sobe-desces que a gente, em que às vezes precisei usar as mãos pra me apoiar, carregando aquele peso todo na cabeça. Nosso guia Cleiton se ofereceu pra ajudar e carregar a porta por um tempo, mas não durou muitos minutos nessa empreitada. O rapaz, magrinho, pegou-a de volta e seguiu. Ser humano, esse bicho que surpreende a gente.

guia levando porta na cabeça

Ao fim de uns 15 km de caminhada e depois de uma curta subida íngreme, chegamos na casa de Dona Raquel por volta das 16h. Se não estivesse cansada, teria dado pulinhos ao ver as primeiras casinhas e varais com roupas.

Me sentia chegando num oásis e sabia que naquele momento as simples acomodações de Raquel, senhora conhecida como “princesa do Pati”, não iam dever nada ao mais sofisticado resort.

chegando à casa de dona raquel

Nas épocas de garimpo e produção cafeeira, o Vale do Pati chegou a abrigar centenas de famílias. Hoje, são pouco mais de 10, que vivem principalmente do turismo. Uma das principais acomodações pra trilheiros, a casa de Dona Raquel é administrada com a ajuda de seus filhos e filhas.

A própria Raquel não estava lá; tirou férias e foi pra cidade. Mas pude conhecer algumas de suas filhas, que nos prepararam um belo bufê, e o filho João, dono de bar e sanfoneiro.

Enquanto algumas das outras casas permanecem com uma atmosfera de “casa” mesmo, menores e mais simples, outras se ampliaram tanto pra receber os hóspedes que têm mais cara de albergue, como é o caso da de Dona Raquel.

O lugar tem quartos coletivos com camas de casal e de solteiro, alguns poucos quartos de casal e uns três ou quatro banheiros compartilhados, além de um tanque com sabão pra lavar roupas, varais, redes e uma vendinha. O valor pago por dia dá direito a roupa de cama e toalha, e é possível optar pela “pensão completa” com jantar e café da manhã.

quarto na casa de dona raquel, no vale do pati

casa de dona raquel

gatinho na casa de dona raquel

A primeira noite

Depois de nos instalar em um quarto coletivo com vista pra os morros, tomar o banho mais gelado da vida, colocar os celulares pra carregar usando a energia solar acumulada no dia e lavar roupas no tanque, fomos jantar. Em mesas grandes, sentamos junto a viajantes de várias partes do Brasil e do mundo.

jantar na casa de dona raquel

Eu já estava exausta e pronta pra dormir quando começou a melhor parte da noite: fomos até o Johnny’s Bar, comandado por João, provar o famoso gengidrink: uma mistura de cachaça curtida em gengibre com limão, mel e gelo. Faz bem pra saúde, né?

Devidamente aquecidos pela cachaça, ficamos jogando conversa fora até ganharmos de presente um forrozinho improvisado.

João aprendeu a tocar “de ouvido”, numa sanfona velha, e hoje usa o acordeão enviado por uma turista suíça que passou por lá. No São João, Carnaval e Réveillon, ele e os irmãos formam o grupo de forró pé-de-serra “Filhos de Raqué”, animando os visitantes que lotam o vale nessas épocas.

casa de dona raquel

gengidrink e joão

Não tive o privilégio de conferir a bandinha completa e minhas pernas doloridas não davam conta de dançar. Mas entre músicas de Luiz Gonzaga e Alceu Valença e o pessoal que chegava atraído pela música e se espremia no pequeno bar, os olhos marejaram, o bairrismo pernambucano bateu forte e o sorriso não quis sair do rosto. Que dia!

joão tocando sanfona

Nas próximas semanas, vou publicar posts sobre os outros dias da travessia do Pati e atualizo esse aqui com os links. Se quiser saber informações práticas e conferir o roteiro completo que fiz nos cinco dias de trilha, veja meu primeiro post sobre o Vale do Pati.

A blogueira fez a travessia do Vale do Pati em parceria com a agência Chapada Adventure Daniel. As opiniões expressas aqui são pessoais e não sofreram nenhuma interferência da empresa. O Janelas Abertas preza pela transparência e sempre sinaliza qualquer parceria ou patrocínio, como informado nas políticas do blog.

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