Mulheres negras viajantes unidas: conheça o coletivo Bitonga Travel
Quantas mulheres negras viajantes você conhece pessoalmente ou acompanha nas redes sociais? Provavelmente, muito menos que mulheres e homens brancos. E isso não é uma casualidade: é reflexo de uma sociedade racista, em que as oportunidades são distribuídas de forma extremamente desigual. E em que as mulheres negras não se sentem representadas no turismo ou na mídia.
Inquieta com essa falta de representação, a cidadã do mundo Rebecca Aletheia resolveu criar, em 2018, o coletivo de mulheres negras viajantes Bitonga Travel. Original de Santo André, em São Paulo, Rebecca tem o hábito de viajar desde bebê. E hoje, aos 34 anos, acumula muitos carimbos no passaporte e diversas vivências transformadoras.
A proposta da Bitonga Travel é compartilhar experiências de mulheres negras viajantes e inspirar outras mulheres a viajarem também. Através do Instagram, do site e da página do Facebook do projeto, correspondentes brasileiras, caribenhas e latino-americanas contam as experiências que vivem pelo Brasil e pelo mundo.
Viajar é um privilégio branco
Ter acesso às vozes de mulheres negras viajantes é essencial, especialmente considerando o quão branco e elitista é esse universo de viagem do qual faço parte. Precisamos lembrar que ser uma mulher negra no Brasil e em boa parte do mundo não é nada fácil. O preconceito é vivenciado no dia a dia e influencia vários aspectos das suas vidas.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), elas recebem salários menores tanto em relação a homens e mulheres brancos quanto a homens negros. E, na nossa sociedade, muitas mulheres brancas delegam tarefas domésticas a negras de classe social mais baixa.
Além do trabalho mal remunerado, mulheres negras frequentemente são responsáveis pelo cuidado de toda a família, e muitas vezes da família alheia também. E isso dificulta muito que possam não só viajar pra o exterior ou pelo Brasil, mas também circular por lazer dentro do seu próprio Estado ou cidade.
Por isso, fiquei muito feliz ao conhecer (ainda que virtualmente) Rebecca e seu projeto, Bitonga Travel. E claro que convidei essa mulher inspiradora pra uma entrevista, né? Na conversa a seguir, você pode conhecer mais sobre a história dela e da Bitonga Travel.
Leia também:
Como é ser uma viajante negra: relatos e reflexões de Thainá
Acessibilidade no turismo: blogueira incentiva cadeirantes a viajar
Por que precisamos ler mais livros escritos por mulheres
Sobre a Bitonga Travel e mulheres negras viajantes
Janelas Abertas: Podes contar resumidamente tua história com viagens?
Rebecca Aletheia: Meus pais eram viajantes e se conheceram no projeto Rondon. Eu e meus irmãos fomos frutos desta relação de amor que dura até hoje. Aos dois meses de idade, fiz minha primeira viagem, para um camping. E desde então, não parei mais de viajar.
Minha primeira ida sozinha para outro estado foi para o Rio de Janeiro, para fazer vestibular. E a primeira vez no exterior foi na Argentina, onde fiz um intercâmbio de 15 dias. Também aproveitei para circular por todo o norte do país, além de viajar ao redor e ir para a Bolívia.
Já morei em Trinidad e Tobago, onde fiz intercâmbio para aprender inglês, e no Tajiquistão e em Moçambique, países onde fiz voluntariado como enfermeira.
JA: O que é a Bitonga Travel e qual seu objetivo?
RA: Bitonga Travel é um coletivo de mulheres negras viajantes. A ideia é abrir caminhos para a visibilidade de mulheres negras latino-americanas, caribenhas e africanas em trânsito e movimento pelo mundo.
No dia 16 de dezembro de 2018 aconteceu, na praia da Enseada no Guarujá (SP), o primeiro encontro. Catorze pessoas de diferentes lugares se reuniram para pautar questões de negritude feminina no espaço turístico. Atualmente somos mais de 130 correspondentes.
A ideia surgiu para que possamos crescer juntas enquanto coletivo e saber que não estamos sozinhas nesse mundo, uma vez que o universo do turismo não abre espaço para mulheres negras. Esses espaços são racistas e não nos reconhecemos no marketing estampado nas páginas das revistas, nas propagandas dos hotéis e restaurantes… Compreendemos que ser uma mulher negra a percorrer o mundo não é algo simples.
JA: O que significa Bitonga?
RA: Bitonga é uma língua bantu de tronco nígero-congolês, mais especificamente da região do Inhambane, no Moçambique.
JA: O que vocês mais escutam das pessoas enquanto mulheres negras viajantes?
RA: Entre as frases mais escutadas, estão: “Está se prostituindo?”, “Não é muito ligada à família?”, “Não quer nada da vida”, “Não quer estabilidade”.
Essas frases incluem os estereótipos pré-estabelecidos para mulheres que se colocam contra todo machismo, racismo, homofobia, transfobia e disparidades sociais do capital. As questões de gênero também são preocupações para o Bitonga Travel. A mulher transexual e transgênero negra não têm a liberdade de ir e vir como a mulher cisgênero.
JA: O que é “viagem” pra você?
RA: Viagem para mim é romper as barreiras do mundo. Mais do que ser, é pertencer a ele. A vida de uma mulher negra é um ato político e viajar faz parte deste ato.
JA: Quais são os principais obstáculos que, na sua visão, nossa sociedade impõe pra mulheres negras que querem viajar?
RA: Além do racismo, que eu já acho um fardo muito pesado, preciso dizer que o sexismo também é um fator que incomoda muito nós mulheres negras. Ser negra é sentir o peso e as consequências do racismo representado pelo ódio e pela discriminação de não aceitação de que todos os lugares também são nossos.
Assim como menosprezar o nosso conhecimento, a nossa independência econômica. Somos vistas como objeto de exploração sexual, um objeto para um sexo como fetiche, tendo que ouvir muitas frases como “Nunca transei com uma negra”.
JA: Quais situações difíceis costuma enfrentar como viajante negra?
RA: As pessoas sempre questionam como eu faço para viajar, afinal de contas sou negra e periférica. Questionam minha formação também. Além disso, não conseguimos nenhuma solidariedade com influencers de viagens e blogueiros. Somos invisibilizadas e silenciadas muitas as vezes.
JA: Vi que além da América Latina e África, você também viajou pela Europa e Ásia Central. Como foi ser uma mulher negra por lá?
RA: Falar de Europa e Ásia é falar de dois mundos completamente diferentes. De países colonizadores e de colonizados, de países milenares, do berço da humanidade.
Ásia Central não sofreu colonização e são mulçumanos, então podemos pensar em países onde tratar sobre racismo é algo que não faz sentido, porém existe a sexualização da mulher negra.
Falar de Europa é lembrar dos colonizadores e da exploração da mão de obra negra para a construção os seus países. E da discriminação enraizada, como é o caso de Portugal, França, Bélgica, Reino Unido, Espanha…
JA: Quais países africanos você visitou e quais foram seus preferidos?
RA: Viajei por nove países africanos. África do Sul, Moçambique, Reino de Eswatini (Suazilândia), Zimbábue, Zâmbia, Botsuana, Malaui, Tanzânia e Etiópia.
Cada um tem a sua particularidade e são muito diferentes. Eu amo uma parte de cada! Para a Victória Falls no Zimbábue e Zâmbia, a palavra fascinante seria pouco.
Assim como em Moçambique a sua comida, suas danças, o arquipélago de Bazaruto e a Ilha de Moçambique. É de arrepiar conhecer a dança típica tufo e a história do maior tráfico de escravos da África Austral.
No Malaui, o Monte Mulange é incrível, assim como contemplar as constelações, o lago e os baobás pelo país. Na Suazilândia, poder conhecer a linda fábrica de velas, a Mantenga Village e participar de um dos melhores festivais de música do país.
Botsuana foi onde fiz o melhor safari do mundo (olha que eu já fiz seis safaris nesta vida). Já a Etiópia é um país que nunca foi colonizado e tem particularidades como a língua e mesmo um calendário próprio.
E para não dizer que não falei das flores, menciono Tanzânia e seu arquipélago de Zanzibar, que são incríveis. Poder conhecer a influência dos Portugueses, árabes e indianos torna o país para lá de intrigante, sem contar as belíssimas praias do país e a cultura riquíssima dos povos Massai.
JA: Como foi ser uma viajante negra na África?
RA: Foi uma viagem em que a minha cor da pele não era um fato que me impedia de algo, eu era uma mulher. Acho que é o sonho de toda viajante. Eles me viam como uma mulher de algum país africano ou, dependendo do país, não me viam com diferença.
JA: E que tal ver in loco raízes tão importantes pra formação do Brasil?
RA: Vivenciar as raízes africanas para mim foi fantástico para que eu pudesse reforçar as raízes que meus pais e avós me ensinaram. Mas acredito que foi ainda mais enriquecedor quando as histórias eram contadas nas rodas de conversas entre amigos. Pensar que muitas das histórias da África não são contadas de fato nos livros e essas são as verdadeiras histórias, aliás, são países que recém saíram da guerra.
JA: Você pode recomendar alguns perfis de viajantes negras nas redes sociais?
RA: Sim! Alguns exemplos são @debora.pinheiros, @inestimavelmundo, @katiananormandia, @kellysdsouza, @lalabtst, @boradescobrir, @kejunaestrada, @marisguii, @roletdapam, @michelli.regina123, @daanicse_, @ayo_frutuoso, @poraicomapro e @monalisalageoficial.
Nota da editora: Também vale conferir a lista de correspondentes no site da Bitonga Travel, com links pra as redes sociais de cada uma.
JA: Tem algum recado pra outras mulheres negras que já viajam ou querem viajar?
RA: Permita-se ir e romper as barreiras para o mundo. Tomar a decisão de ir é entender que o mundo é nosso e que podemos estar em todos os lugares. Viajar é ir para qualquer lugar deste universo, mas também é fazer do seu bairro, sua cidade ou seu país o melhor lugar do mundo. Seja sua própria inspiração.
E você, conhece outras mulheres negras viajantes com histórias inspiradoras? Compartilha aí nos comentários!
As fotos que ilustram o post pertencem a Rebecca Aletheia e à Bitonga Travel e foram cedidas para publicação no blog.
Posts Relacionados
3 Comentários
Deixe o seu comentário
Excelente matéria.Da força para a gente construir o sonho de conhecer lugares, sem receio.O mundo e grande e lindo, a vida curta para permanecermos apegadas a um só lugar.E preciso despertar a universalidade existente em nós e conhecer este grupo faz isto.
Maravilhoso, Neusa! Fico muito feliz! :)
Adorei o que falastessobre a África, já viajei para os Estados Unidos e conheci 5 cidades americanas, o que mais me chamou atenção foi um americano apertar a mão do meu genro dizendo que era a primeira vez que apertava a mão de um negro brasileiro