Blogueira com deficiência visual viaja sozinha com sua cadela-guia
“Me chamo Mellina, sou paulistana, turismóloga, deficiente visual e apaixonada por viajar! Hoje a Hilary, minha cadela-guia, me acompanha nas andanças por esse mundão.” Essa é a descrição de Mellina Reis no seu blog de viagens 4 patas pelo Mundo. Nele, ela compartilha dicas de viagem, fala sobre acessibilidade no turismo e incentiva outros deficientes visuais a superar medos e desbravar o mundo.
Mellina tem uma degeneração na retina chamada distrofia de cones e bastonetes, que fez com que perdesse sua visão central (responsável pelo foco). Em 2011, sua visão piorou devido ao surgimento da catarata, o que fez com que ela precisasse se readaptar e aprender a usar uma bengala. Em 2014, depois de quatro anos de espera, a labradora Hilary chegou à sua vida através do Projeto Cão-Guia do Sesi SP.
“Ela chegou para ser meus olhos e me mostrar um outro jeito de ver o mundo. Ela me trouxe muito mais autonomia e melhorou minha autoestima. Agora não tenho mais receio de ir a algum lugar novo sozinha. Pego as direções básicas e vamos em frente!”, conta Mellina.
Formada em Turismo, ela sempre foi apaixonada por viajar, e com a ajuda de Hilary continua mantendo viva essa paixão. “A vida é muito curta para ficarmos trancados dentro de casa nos lamentando. Dificuldade todos temos. Tenho medo toda vez que saio de casa. Nunca sei quem irá me ajudar, se a Hilary irá se distrair e deixará que eu me machuque etc. Mas ficar dentro de casa não é solução, afinal, podemos sofrer acidentes mesmo dentro de casa”, observa.
Ela diz que sente falta de enxergar, mas que hoje tem uma maneira diferente de ver o mundo: “Não enxergo, mas tenho todos os outros sentidos que me ajudam, além de pessoas maravilhosas ao meu redor que estão sempre torcendo por mim”.
Através do blog, que criou em 2016 e é hoje sua ocupação principal, Mellina busca fazer com que os envolvidos na cadeia turística se preparem melhor pra receber pessoas com deficiência, além de conscientizar sobre os cães-guia, mostrar que pessoas com deficiência têm uma vida normal e ajudar as pessoas a se aceitarem como são.
Ela também dá dicas práticas pra deficientes visuais, como no post onde fala de vários aplicativos úteis. “Existem softwares de voz que instalamos no computador e nos permitem navegar por tudo, transformando em áudio o que aparece na tela”, explica. No caso dos smartphones, há recursos de acessibilidade próprios do sistema, como o Voiceover para iOS e o TalkBack para Android: “Conforme passamos o dedo na tela, ele vai lendo o que está escrito, e dessa forma conseguimos navegar em tudo normalmente”.
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Quer saber mais sobre a história de Mellina e o que ela pensa sobre acessibilidade no turismo? Dá uma olhada na entrevista:
Entrevista com Mellina Reis do 4 Patas pelo Mundo
Quando foi diagnosticada sua degeneração na retina?
Fui diagnosticada aos 14 anos. A doença é progressiva e foi piorando conforme o tempo passava, mas se agravou com o surgimento da catarata, e em 2011 começou o processo de perda severa da minha visão. Hoje tenho em torno de 3% da visão.
Não consigo focar as coisas. Enxergo um imenso borrão, mais ou menos quando olhamos no espelho embaçado após um banho bem quente. A claridade influencia também: em dias muito claros não enxergo nada. Ao entardecer, já começo a enxergar um pouco mais, mas nunca com nitidez.
Como era sua vida antes da Hilary e o que mudou?
Quando eu usava somente a bengala, não tinha muita coragem de explorar muitos lugares. Fazia os caminhos conhecidos e somente o necessário. Na primeira vez em que ia a algum lugar novo, gostava de ter sempre alguém que enxerga para me ensinar o caminho.
Após a chegada da Hilary, tudo mudou. Tivemos nosso período de adaptação, mas depois de pegar confiança nela, vamos para todos os lugares, mesmo sem saber. Pego o direcionamento em um aplicativo de navegação e vamos em frente!
Você viaja com que frequência?
Nos últimos 3 anos, fiz praticamente uma viagem por mês. Sempre gostei muito de viajar, mas antes trabalhava em empresa e ficava mais restrita a período de feriado e férias.
Sempre gostou de viajar sozinha?
O gosto de viajar sozinha veio mesmo depois da chegada da Hilary, quando fizemos nossa primeira viagem sozinhas em 2015. Já tinha viajado antes sozinha, em 2008 para a Europa, mas na época não me despertou esse gosto.
Quando viajo sozinha posso fazer as coisas do meu jeito, conheço sempre muita gente, tenho mais contato com as pessoas locais, me descubro de formas diferentes e sinto uma satisfação imensa ao final da viagem por tudo ter dado certo! Me sinto vitoriosa!
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Quais foram suas viagens preferidas?
Difícil dizer, cada viagem é única! Gostei muito de Fortaleza, Uruguai, Orlando, Grécia, Belo Horizonte, Curitiba… A lista é grande!
Você já deixou de visitar algum lugar por causa da acessibilidade?
Já deixei de visitar pelo lugar não me oferecer assistência. Antes de comprar o ingresso questionei se teria alguém para me acompanhar, e como não teria, acabei não indo. Mas não deixo muito que isso me impeça, a não ser que o local possa me oferecer algum risco.
Toma alguma medida específica antes de viajar por conta da acessibilidade?
Sinceramente, não me preocupo muito. Hoje, por causa da Hilary, quando saio do país me informo sobre a lei do cão-guia naquele país, imprimo e tento ter tudo em mãos para apresentar caso alguém se negue a nos deixar entrar no estabelecimento por causa dela.
Que dificuldades já sofreu em termos de acessibilidade no turismo?
Tem muito a questão do despreparo das pessoas para saber como “lidar” com uma pessoa com deficiência e também por desconhecerem a lei do cão-guia. Isso é o que me traz mais problemas nas viagens, quando se recusam a permitir nossa entrada por causa do cão, mesmo explicando que é lei; cão-guia é permitido em todos os lugares.
Já me aconteceu muito de hotéis falarem que não aceitam cachorros, mesmo sendo cão-guia, ou de quererem me colocar em um quarto mais escondido ou de categoria inferior por conta dela. Mas de modo geral tenho boas experiências.
Além disso, nós deficientes visuais navegamos normalmente em sites, porém existe uma norma W3C de acessibilidade que nem sempre é cumprida pelas empresas e isso dificulta nosso acesso a alguns sites. Um exemplo são os sites de companhias aéreas. Sempre que preciso comprar alguma passagem preciso pedir ajuda ou fazer a compra por telefone, pois tenho dificuldades em navegar por esses sites.
O que acha que precisa ser melhorado com mais urgência pra que o turismo seja mais inclusivo pra pessoas com deficiência visual?
Lembrarem que pessoas com deficiência não é só cadeirante e que somos capazes de fazer as coisas. Uma vez visitei o Cristo no RJ, estava com um amigo deficiente visual também. O rapaz que nos auxiliou era ótimo, super prestativo.
Logo que descemos na primeira parada da van ele perguntou se gostaríamos de conhecer uma exposição acessível. Após visitar toda a exposição, expliquei para ele que era acessível para cadeirante, mas não para nós, que precisamos tocar nas coisas, e dei algumas sugestões. Ele me respondeu: “Nossa, nunca tinha pensado nisso!”.
Viajar com Hilary é complicado em termos burocráticos?
Precisamos providenciar alguns documentos quando saímos do país e ter as vacinas em dia, mas por ser cão-guia não temos nenhuma despesa adicional para viajar de avião ou ônibus.
Hilary já andou em todos os meios de transportes possíveis (barco, avião, ônibus, trem, carro). O cão-guia tem livre acesso em todos os ambientes, menos UTI e centro de queimados. Para viajar, ela embarca sempre comigo no avião e ônibus, viaja deitada nos meus pés sem incomodar ninguém (ela é meio espaçosa e às vezes ocupa um pouco o espaço do assento ao lado).
Como é curtir os destinos com os outros sentidos?
Eu particularmente acho ótimo! Sinto, sim, falta de enxergar, principalmente em algumas atrações. Mas curto muito mais do que quem enxerga, porque presto atenção em todos os outros detalhes além da visão. Sinto o cheiro do lugar, sinto a energia, degusto a gastronomia, tenho mais contato com as pessoas que se aproximam para oferecer ajuda ou por curiosidade com o cão-guia… Apenas não enxergo!
Quais são seus principais objetivos com o blog?
Quero mostrar para as pessoas que precisamos vencer os nossos obstáculos e VIVER. A vida é muito curta e temos que enfrentar os nossos medos para aproveitar tudo o que há de melhor! As dificuldades existem, mas as coisas boas também. Quero mostrar que as pessoas com deficiência também se divertem e têm uma vida normal como qualquer outra, conscientizar as pessoas também com relação ao cão-guia e abrir os olhos do setor de Turismo para nós.
Que conselhos daria pra quem tem receio de viajar sozinha com deficiência visual?
Temos sim nossas dificuldades, mas sempre existem pessoas super dispostas a nos ajudar. Não podemos deixar que a vida passe em branco. Está crescendo o número de agências preocupadas com o Turismo Inclusivo, facilitando para quem tem vontade de viajar, mas não tem quem acompanhe e tem receio de ir sozinho. Essa agências oferecem todo tipo de suporte no destino visitado.
Tudo é questão de ter a primeira experiência. Se for boa, continue desbravando o mundo. Se não gostar, pelo menos já sabe como foi e quais foram as dificuldades.
Todas as fotos que ilustram o post pertencem a Mellina Reis e foram cedidas para publicação no Janelas Abertas.
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