Desmentindo frases de viagem: nem todo clichê é verdade
“50 frases de viagem para usar como legenda no Instagram”, “100 frases de viagem para lhe inspirar” e similares são títulos de vários textos pela internet afora. Muitas dessas citações são daquelas que circulam por aí sem crédito a nenhum autor, enquanto outras são retiradas de grandes obras da literatura, filmes e músicas. Várias são bonitas e inspiradoras, mas vez ou outra leio alguma que me parece meio estranha, pra dizer o mínimo.
Resolvi então ser ~a chata do rolê~ e vir falar aqui sobre algumas dessas frases de viagem com que eu não estou de acordo. Lembrando que é tudo opinião minha e obviamente você tá livre pra discordar de mim também, né?
“Desmentindo” frases de viagem
“Viajar não é luxo, é necessidade”
“Viajar nunca é uma questão de dinheiro, mas de coragem”
Viajar pode não ser “luxo” no sentido ostentador da coisa, afinal, existem muitas formas de viajar gastando pouco. Mas não deixa de ser um grande privilégio, que simplesmente não é possível pra grande parcela da população mundial.
Necessidade é comer, dormir, ter seus direitos básicos atendidos. Viajar a lazer é consumo, mesmo que você fuja do esquema turístico padrão e use a experiência pra melhorar a si mesmo e ao mundo.
Por mais que eu deteste imaginar uma vida em que eu não pudesse viajar e por mais que deseje que um dia isso seja possível pra todas as pessoas do planeta, acredito que chamar de “necessidade” é forçar a barra.
No mesmo sentido, a segunda frase me parece uma das mais absurdas. Como assim “nunca é questão de dinheiro”? Só se você tá falando de uma bolha de classe média, que tem acesso ao mínimo pra viver bem, uma família estruturada, informação e oportunidades, né?
Muita gente tem dinheiro de sobra e deixa de viajar por falta de coragem? Com certeza. Mas cair no mundo, mesmo que da forma mais econômica possível, não é uma possibilidade pra todo mundo, e generalizar esse comportamento me parece simplista e elitista. Só lembrando: viajar a lazer é, sim, um tremendo privilégio.
“Viaje longe o suficiente para encontrar a si mesmo”
“Viajar é a única coisa que você compra e te faz mais rico”
Pra começar, acredito que “se encontrar” não é um evento com começo, meio e fim, mas um processo contínuo que nos acompanha pela vida inteira.
Além disso, acho uma besteira pensar que é preciso viajar – muito menos viajar pra longe, como diz a primeira frase – pra se conhecer melhor. É possível passar por caminhos de autoconhecimento de diversas formas sem ter que ir pra o outro lado do mundo.
E pela mesma lógica, não acredito que viagens sejam o único investimento financeiro que nos enriquece como pessoas. Investir tempo e dinheiro em estudos, por exemplo, também pode nos fazer mais ricos de conhecimento, referências e inspiração.
Assim como trabalhar em projetos desafiadores, conhecer pessoas de backgrounds diferentes do seu, explorar sua espiritualidade ou mergulhar nas mais diversas expressões artísticas são ótimas formas de se desenvolver como pessoa e não exigem necessariamente um deslocamento geográfico.
Eu amo usar viagens como ferramenta de transformação pessoal e autoconhecimento e adoraria que cada vez mais gente conseguisse fazer isso também, mas acho uma besteira elevar viagens a esse patamar quase milagroso.
Leia também:
Por que você não precisa viajar pra “se encontrar”
Por que não devemos tratar viagens como um imperativo moral
“Ninguém volta de uma viagem sendo o mesmo que era antes”
Da mesma maneira em que é possível se transformar sem viajar, também é super possível viajar e não mudar nada em si mesmo. Quantas viagens são apenas formas de lazer e escapismo e não trazem nenhuma reflexão profunda? Quanta gente não tá nem pensando em procurar esse tipo de mudança?
Viagens têm o poder de nos fazer superar preconceitos, desafiar padrões e aprender muito. Mas se abrir pra o mundo é um exercício contínuo e depende muito de cada um. Depende de como encaramos a viagem, do esforço que fazemos pra não considerar que nossa forma de ver as coisas é a melhor de todas, da nossa atitude pra lidar com o que acontece no percurso…
A viagem não faz nada sozinha, nem é uma fórmula mágica que faz as pessoas amadurecerem ou serem mais felizes automaticamente.
Leia também:
A viagem não faz nada sozinha
“Colecione momentos, não coisas”
Confesso que essa aqui é mais implicância minha, mas lá vai: sou super a favor de gastar menos com itens materiais e investir mais em experiências, então a princípio concordo com essa frase.
Por outro lado, fico com um pé atrás com a ideia de “colecionar momentos”, dependendo da perspectiva que se dê a ela.
Essa frase me lembra aquelas listas de “coisas que você precisa fazer antes de morrer”, “atrações obrigatórias em tal destino” e tantas outras que transformam a vida e as viagens numa espécie de jogo a ser “zerado”, com condições específicas a ser cumpridas pra alcançar determinado nível de satisfação.
Como quando um colecionador fica mais preocupado em encontrar a figurinha que falta pra seu álbum em vez de simplesmente curtir cada figurinha que vier, sabe?
A sensação que tenho, quando falamos em “colecionar momentos”, é que estamos transformando momentos em coisas – algo que vejo acontecer no universo de viagens, especialmente com a popularização do Instagram. Quanta gente não viaja ansiosa pra viver um punhado de experiências que possam ser quantificadas e “embaladas” como momentos legais e descolados?
Desse jeito, acredito que corremos o risco de reduzir experiências potencialmente transformadoras a uma check-list pra ser riscada. Me incluo nesse problema, mas tenho tentado me desfazer de “bucket lists” e focar mais no presente e na subjetividade das experiências. Por mim, a gente não colecionava nada; só aproveitava.
Leia também:
Vamos parar de falar em “atrações imperdíveis” em viagens?
Você acrescentaria outras frases de viagem a essa lista, ou concorda com alguma dessas aí? Conta nos comentários!
Pra conferir muito mais conteúdo sobre viagens todos os dias, siga o Janelas Abertas no Instagram e no Youtube. Espero você lá! :)
Posts Relacionados
4 Comentários
Deixe o seu comentário
Muito bom ler uma viajante desmascarando o manual de “como viajar”… LIBERTADOR!!!!!
Que bom que você gostou, Mauro! :) Temos sempre muita coisa pra desconstruir, né? Um abraço e obrigada por comentar! :)
A frase “viajar nunca é uma questão de dinheiro e sim de coragem” não é de Paulo Coelho. Foi dita por Chris Mccandless e antes de afirmar que é uma frase absurda é preciso entender que ele não estava falando sobre viajar como um turista, mas sim de ter a coragem de deixar a zona de conforto e ter uma vida de aventuras.
Chris cruzou os EUA e foi até Stampade trail, no Alaska. E fez a maior parte do percurso de carona ou apé!
Oi, Renan! Eu imaginei que não fosse realmente de Paulo Coelho, porque boa parte das coisas atribuídas a ele (ou Clarice Lispector, Veríssimo etc. :P) na internet não são de autoria dos mesmos… Mas apesar de ter lido o livro sobre Chris McCandless (tem até um post bem antigo aqui no blog: https://janelasabertas.com/2014/01/12/livro-na-natureza-selvagem-e-a-estrada-como-busca-de-sentido/), não lembrava que era dele :) De toda forma, continuo discordando do pensamento. Seja como “turista” ou “viajante fora da zona de conforto”, viajar é um privilégio, sim. Chris saiu sem dinheiro (inclusive queimou o que tinha, né?), mas era de uma família de classe média alta, tinha acesso a oportunidades e informação e não tinha responsabilidades pra com outras pessoas. Acho inclusive um bom exemplo pra se pensar sobre isso :) Defendo muito aqui no blog que é possível viajar com MUITO menos grana do que a maioria das pessoas pensam (tem vários posts sobre o assunto aqui: https://janelasabertas.com/2018/10/15/como-viajar-gastando-pouco-guia/) Mas mesmo que seja sem grana, de carona, se hospedando na casa de desconhecidos ou o que for, a grande maioria da população mundial não tem condições nem de pensar em “ter coragem de viver uma vida de aventuras”. Seja porque precisa garantir o sustento da família com metade de um salário mínimo per capta, como a metade dos brasileiros (https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/30/economia/1572454880_959970.html) ou ainda menos que isso, como outros tantos; seja por falta de informação e acesso a direitos básicos como saúde, educação e lazer; seja por questões estruturais que os afetam subjetivamente, como o racismo (o número de negros viajando é muito menor que o de brancos, por exemplo)… Tou inclusive escrevendo hoje mesmo um texto sobre como viajar é um privilégio. Se tiver interesse em continuar essa discussão, dá uma olhada aqui daqui a uns dias :) Um abraço!