México e milho: mais que gastronomia, uma questão de identidade
Tacos, enchiladas, quesadillas, tlayudas, elotes. É impossível ir ao México e não se deparar com uma infinidade de alimentos que têm como base o milho, elemento central da culinária nacional. Mas isso é só a superfície da relação especial entre os mexicanos e esse cereal. Quer entender por que México e milho são dois termos tão conectados? Vou tentar explicar o que aprendi. :)
9 mil anos de história
Comecei a me dar conta da dimensão da importância desse cereal pra o país quando visitei o Museu Nacional de Antropologia, na Cidade do México, e quando assisti ao documentário Maíz en Tiempos de Guerra, na ótima Cineteca Nacional.
Quando fui pesquisar, confirmei: vários estudiosos consideram que nenhum país do mundo é tão social, economicamente e culturalmente ligado ao milho quanto o México. Pra começar, ele surgiu por lá.
Há cerca de 9 mil anos, povos que moravam por aquelas bandas encontraram uma versão primitiva do milho, com uma espiga de uns 2,5 centímetros, e começaram a cultivá-lo.
Até hoje, esse é um dos principais plantios do país. Mas se você tá imaginando um monte de amarelo-ouro saindo dos milharais, tá parcialmente enganado, porque aquilo ali tá mais pra um arco-íris.
Além do milho amarelo, que estamos acostumados a consumir no Brasil, você encontra por lá um montão de outras cores. Tem o branco, que é muito comum, e também variedades vermelhas, azuis e pretas, por exemplo. À primeira vista, a sensação pode ser de podridão, né? Mas muito pelo contrário. Todas essas cores representam vida.
O maior número de variedades de milho no mundo se encontra no México: são 64 tipos (sendo 59 nativos do país) dentre as 220 variedades existentes na América Latina inteira. E o mais interessante é que, enquanto em outros países latinos as raças primitivas desse cereal são consideradas “relíquias”, no México muitas delas continuam sendo usadas no dia a dia.
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Uma planta multiuso
Ainda não tá impressionado com a força dessa relação de amor? Pois saiba que o México tem o maior consumo per capita de milho no mundo: são 63 kg anuais, contra uma média de 18 kg no Brasil, por exemplo. Em algumas comunidades, estima-se que esse alimento sozinho oferece cerca de 70% das calorias e 50% das proteínas consumidas diariamente pela população.
A variedade de preparações é enorme, como mencionei lá no primeiro parágrafo. Além de muitos tipos de massas envolvendo recheios, como gorditas e tacos, se encontra facilmente elotes e esquites (espigas e grãos em copinho, vendidos em carrinhos de rua), tamales (primos das nossas pamonhas), pozole (uma espécie de sopa), atole e tejate (bebidas pré-hispânicas ainda consumidas em muitos lugares).
Ainda assim, boa parte do consumo se concentra nas tradicionais tortilhas. Estatísticas apontam que os mexicanos destinam nada menos que 20,9% dos seus gastos em alimentação comprando esses disquinhos de milho. Esse é o alimento básico da galera por lá, especialmente em classes sociais mais desfavorecidas, e calcula-se que no país inteiro são consumidas 450 milhões de tortilhas por dia.
Mas não para por aí: o milho é tipo aquele seu amigo multitasker que não se limita a uma profissão tradicional. Ele chega a ser considerado “o sucesso agronômico mais importante da história da humanidade”, tendo muitos usos industriais e indo bem além da gastronomia. Calcula-se que dentre cerca de 10.000 produtos encontrados num supermercado comum, pelo menos 2.500 contêm milho em alguma forma.
“Mas como assim”, você pergunta? Pra começar, cerca de 75% da composição desse cereal é amido, substância muito usada pela indústria alimentícia e em produtos tão variados quanto resinas pra pintura de carros, sabão, pasta de dentes e plásticos biodegradáveis.
A glicose que vem do amido também é usada pra nutrir bactérias que produzem a penicilina e pra o revestimento de comprimidos, por exemplo. Ah, e ele ainda serve como combustível. Tá achando pouco? Pois saiba que além dos usos práticos, tem todo um rolê simbólico por trás da planta.
Mitologia e tradições
Recentemente, pesquisadores descobriram que a jornada histórica do milho até chegar à versão atual foi mais complexa do que se imaginava, passando inclusive pelo Brasil durante seu desenvolvimento. Seja como for, o certo é que sem o trabalho humano, ele provavelmente não existiria hoje.
Isso porque as características da planta dificultam muito que ela espalhe sementes espontaneamente por aí. Afinal, elas ficam bem presas à espiga e cobertas por folhas resistentes. Assim, nós seres humanos somos muito importantes pra fazer com que o milho se reproduza de forma significativa. O que, de certa forma, torna esse vínculo entre homem e planta ainda mais forte.
Pra algumas civilizações, no entanto, o laço é TÃO forte que é basicamente uma coisa só. Os maias, por exemplo, acreditavam que o homem veio do milho. O Popol Vuh, livro mais importante da mitologia maia, diz: “De milho amarelo e milho branco se fez sua carne”.
Existe, também, o mito de que o milho teria sido criado a partir das unhas do deus Cintéotl.
Até hoje, muitos povos indígenas mexicanos consideram o milho uma divindade e dão a ele um caráter sagrado. Afinal, é dele que depende, em grande parte, a subsistência dessas comunidades. O grão é considerado precioso, por assegurar a continuidade do ciclo da vida.
O catolicismo também não escapa dessa relação. Festas como a Semana Santa, Corpus Christi, Dia de Mortos e Natal coincidem com as etapas do ciclo de cultivo do cereal. Em muitos lugares, essas cerimônias são associadas ao ciclo do milho e usadas pra pedir chuva em épocas de semeadura ou agradecer pela colheita, por exemplo.
“Ao cultivar o milho, o homem também se cultivou. As grandes civilizações do passado e a vida de milhões de mexicanos de hoje têm como raiz e fundamento o generoso milho. Ele foi fundamental para a criatividade cultural de centenas de gerações; exigiu o desenvolvimento e aperfeiçoamento contínuo de inúmeras técnicas de cultivo; conduziu ao surgimento de crenças e práticas religiosas que fazem dele uma planta sagrada; permitiu a elaboração de uma arte culinária de riqueza surpreendente; marcou o sentido do tempo e ordenou o espaço em função de seus próprios ritmos; inspirou as mais variadas formas de expressão estética; e se converteu na referência necessária para entender formas de organização social, pensamento e estilo de vida das mais amplas camadas populares do México. Por isso, na realidade, o milho é a base da cultura popular mexicana” (tradução livre de trecho do livro Sin Maíz no Hay País, por Guillermo Bonfil, 2007).
A ameaça dos transgênicos
Sabe aquele documentário “El Maíz en Tiempos de Guerra” (O milho em tempos de guerra), que mencionei lá em cima? Ele me fez entender melhor não só a importância do milho pra identidade mexicana, como também a ameaça que os transgênicos oferecem pra essa relação cultural, alimentar e econômica.
O filme acompanha o ciclo de plantação e colheita do milho através de quatro famílias indígenas em diferentes regiões do México. Ele mostra desde o cuidado ao selecionar as sementes e preparar a terra à enorme variedade de preparações feitas com a planta, reforçando como a história desse cereal é paralela à história dos povos originários mexicanos.
E mostra, também, a luta dos indígenas contra o cultivo de milho transgênico, que é proibido, mas vem acontecendo há décadas. Usado pra aumentar a produtividade e a resistência a pragas e inseticidas, entre outros fins, o cereal transgênico provoca o desaparecimento de espécies nativas, além de prejudicar a agricultura familiar.
As famílias entrevistadas no filme provavelmente nunca tiveram contato entre si, mas têm um discurso totalmente harmônico. Todos eles afirmam, em seus idiomas originários, que defender a semente natural do milho é defender seu território.
Através desses depoimentos e do que vivi em umas poucas semanas em solo mexicano, percebi que essa forte relação com o milho vai muito além da planta em si, e além do próprio México. Ela traz, também, uma mensagem universal: nós, seres humanos, fazemos parte da terra. Dela dependemos, e dela devemos cuidar.
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2 Comentários
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Apreciei imenso, até porque estou terminando um trabalho sobre o milho em Cabo Verde, uma abordgem antropológica que já me levou à música, à poesia, à prosa, ao catolicismo, às romarias, à minha língua crioula, enfim, aos valores da identidade cultural cabo-verdiana. Quando estiver editado, enviarei um exemplar para os comentários que tiver por bem.
Mantanhas de Cabo Verde
Que maravilha, Manuel! Fico muito feliz! :) Adoraria ler seu trabalho! Um abraço