Por que não devemos tratar viagens como um imperativo moral
Recentemente, um texto que tava circulando pela internet gerou uma mini polêmica na fanpage do blog, no grupo Nômades Digitais e em outros cantos web afora. Intitulado “Porque ‘não se preocupe com dinheiro, apenas viaje’ é o pior conselho de todos os tempos”, o tal texto começa radical já no título e tem alguns pontos questionáveis, mas levanta questões que acho muito importantes.
A autora critica a atitude de pessoas que não precisam se preocupar com sua segurança financeira e propagam aos quatro ventos a ideia de que você deve viajar como um imperativo moral, sem se preocupar com “algo tão trivial como dinheiro”.
Eu não concordo com certas coisas que ela diz, nem com sua postura acusatória e generalizadora, mas em vez de explicar do que discordo, vou aproveitar o gancho pra falar do que concordo, ou seja, falar mais uma vez sobre as entrelinhas que tão por trás do mantra “viajar é incrível e pode mudar sua vida“.
Obviamente defendo esse pensamento, mas como tudo na vida ele não é preto no branco. Resumindo, esses são alguns pontos em que eu acredito:
Não é preciso ser rico pra viajar
Pra começar, queria deixar claro uma conclusão à qual eu e tantas outras pessoas chegamos por experiência própria e que defendemos efusivamente: não é preciso ser rico pra viajar.
Mesmo que sua situação financeira não seja das melhores, muitas vezes é possível priorizar, se planejar, economizar (dicas aqui neste post) e fazer a viagem dos sonhos, mesmo que a viagem precise ser bem econômica (veja aqui 15 dicas pra viajar sem gastar muito).
Com criatividade e determinação se vai looonge, sem dúvidas. E desistir de fazer a viagem tão desejada por pensar que isso não é possível pode ser uma besteira.
Nem todo mundo pode viajar
Tendo dito isso, é importante lembrar que pra boa parte da população mundial, que não tem nem as necessidades mais básicas atendidas, todo o planejamento do mundo não é suficiente (segundo a ONU, 800 milhões de pessoas no mundo ainda vivem na pobreza e sofrem com a fome).
Sem falar em tantos outros que não vivem em situações tão extremas, mas tampouco têm acesso a uma série de privilégios (afinal, como diz a autora do tal texto que mencionei lá em cima, “alguns são simplesmente mais incumbidos de responsabilidades e compromissos”).
Enquanto vivermos numa sociedade em que boa parte das oportunidades que teremos na vida são definidas com base no contexto em que nascemos, acho complicado usar discursos do tipo “largue tudo e viaje pra ser feliz” de maneira simplista.
Trata-se de um modelo que funciona pra uma parcela privilegiada da população – e com isso não me refiro apenas aos “filhinhos de papai” que a autora do texto critica, mas também a pessoas como eu, que vêm de uma família de classe média e têm que ralar por muita coisa, mas têm também inegáveis vantagens.
Por exemplo, não precisar ajudar no sustento da família, poder continuar morando na casa dos pais enquanto economiza pra viajar e saber que tem um teto pra voltar se as coisas não saírem bem como planejado.
Isso me lembra a ideia de que você deve trabalhar com o que ama: pra muitos isso é simplesmente impossível, e perpetuar esse tipo de discurso como um imperativo pra felicidade, e não como uma possibilidade, pode gerar frustração em muita gente – fazer, como diz também o texto polêmico, muita gente “se sentir como um derrotado por não conseguir alcançar esse patamar.”
Nem todo mundo quer viajar
Isso pode parecer absurdo pra você, mas algumas pessoas até podem viajar o mundo todo, mas não querem. PAM. :P Ok, é óbvio que cada um tem suas prioridades e estilo de vida, coisa e tal. Mas parece que nessa onda de “saia da sua zona de conforto e faça coisas incríveis do outro lado do mundo” surgem julgamentos a quem não faz isso.
É como diz Carol neste post do blog Crise dos 30: quando tratamos a questão de forma rasa, acabamos dividindo as pessoas em dois grupos. De um lado, os “saidores da zona de conforto”, que largam os empregos chatos pra correr atrás de algo mais realizador, e do outro lado os “conformados”, que “vivem no automático” e seguem um modelo de vida mais tradicional, num escritório sem janelas com férias uma vez por ano.
Concordo com Carol quando ela diz que o perigo é classificar um grupo ou outro como certo ou errado, melhor ou pior, enquanto muitas pessoas são realmente felizes sem viajar – e até, vejam só, pegando engarrafamento todo dia, comprando a casa própria e fazendo o mesmo churrasco todo domingo com a família.
Viagens podem ensinar muito
Neste post, falei de cinco coisas que aprendi morando fora: passei a ser um pouco mais flexível em relação a coisas práticas; a ter mais empatia por pessoas diferentes de mim; percebi que pior que não saber é se acomodar à ignorância; fiquei mais acostumada a pedir ajuda quando necessário; e me liguei que a vida é feita de muito mais possibilidades do que a minha rotina costuma sugerir.
Sem falar que me dei conta de que preciso de muito menos coisas pra viver; que amizades de verdade não se medem por presença física nem duração; que se abrir pra estranhos e ouvir as histórias deles pode ser incrível (a vida é feita de encontros!); que o mundo tem muito mais injustiças do que aquelas que nos rodeiam, mas todas elas nos afetam; e mais um bocado de coisa – ou assim espero.
Eu podia ter aprendido tudo isso aqui mesmo, mas acabou que essas coisas surgiram com muito mais força enquanto construía uma nova vida em solo estrangeiro. Nesse sentido, considero as viagens um “atalho” pra certos aprendizados; uma forma agradável de enfrentar desafios que poderiam ser evitados mais facilmente no dia a dia e que podem trazer novas perspectivas sobre a vida.
Nem toda viagem é engrandecedora
Ou seja: defendo veementemente que dá pra mudar muito como pessoa durante uma viagem. Mas eu disse “dá”, percebeu? Ou seja²: isso não é garantido. Afinal, a viagem não faz nada sozinha.
Esse potencial transformador depende de você, da sua mente aberta, da sua atitude ativa, do esforço pra descobrir coisas novas sobre você e interagir de verdade com uma nova cultura. Nesse ponto, concordo com o tal texto polêmico quando ele diz: “Viajar pelo simples viajar não é uma realização, e nem é garantia de fazer qualquer pessoa mais culta e única”.
O quão engrandecedora será uma viagem nem depende tanto, penso eu, do destino. Tanto ou mais importantes são vários outros fatores como o momento da sua (nossa) vida, as companhias e principalmente seu (nosso) estado de deslumbramento.
E não quero dizer que existe um jeito certo de viajar, mas acredito que ficar só dando “check” em pontos turísticos sem pensar muito sobre o que vê dificilmente vai mudar sua vida. Às vezes, viajar pode ser só lazer mesmo.
Existem muitas outras experiências transformadoras
Tem muitas frases feitas sobre viagem que circulam por aí, mas uma delas me incomoda particularmente: é aquela história de que viagens são “a única coisa que você compra que te deixa mais rico”.
Existem outras muitas formas de se enriquecer como pessoa, e viajar não me parece ser a única que demanda investimento financeiro. Vai dizer que escolas e livros não têm um imenso potencial transformador? Viajar não é algo superpoderoso, nem é superior a uma infinidade de experiências que você pode viver do lado de casa.
Se a pessoa não pode ou não quer viajar, isso não quer dizer que ela não tenha vontade de aprender e se desenvolver. E que não o consiga de várias outras maneiras, seja através do trabalho, do convívio com quem a rodeia, das vivências em outras áreas da sua cidade, de cursos e atividades diferentes, de desafios pequenos ou grandes no dia a dia, do cuidado com a família, de leituras e conversas, ou o que for. Ir pra um lugar diferente é só uma de muitas formas de sair da zona de conforto.
Leia também:
Por que você não precisa viajar para “se encontrar”
Conclusão: não existe fórmula pronta
O que mais me incomoda, como defende a autora desse outro texto, é que muitas vezes não se fala apenas sobre como viajar é maravilhoso, mas também sobre como isso é muito melhor do que permanecer com os mesmos amigos e o mesmo estilo de vida. Tento não cair nessa armadilha e acho que às vezes escorrego, na empolgação mesmo. Mas é importante estarmos sempre nos questionando, né?
Se você tem uma família rica e pode viajar pelo mundo todo sem se preocupar com dinheiro em nenhum momento, se você passa o ano poupando pra ir a outro lugar nas férias, se você quer ser diretor de uma grande empresa, se você sonha em ser funcionário público, se nada o faz mais feliz do que ser don@ de casa… O que há de errado nisso?
O ser humano costuma ter a tendência de se comparar e julgar os outros pelos seus parâmetros. Meu objetivo aqui no blog é falar de uma de muitas possibilidades de felicidade, que vem me deslumbrando cada vez mais, mas a verdade – que preciso repetir pra mim mesma de vez em quando – é que não existe um só caminho pra todo mundo no mundo.
Ainda bem, porque ele ia ficar engarrafado, né? ;) A graça é ir construindo o nosso, com nossos passos e de acordo com nossas possibilidades. E lutar pra que mais pessoas possam escolher seus caminhos.
E você, concorda ou discorda? Me conta!
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14 Comentários
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Adorei !!! Super verdadeiro e objetivo. São tantas polêmicas hoje em dia, que é confortante ler textos sensatos e, ainda assim, encantadores :) Um super beijo !!!
Que alegria esse comentário vindo de ti, Gabi! :) Muito obrigada. Um beijo!
Viajar é tudo de bom, sem a menor dúvida. Porém, de fato , não é a única forma de se sentir preenchida.
Aliás, penso que viver sempre correndo do próprio espaço assemelha-se a uma fuga de si mesma.
Equilíbrio. Meio termo.
Abs
Equilíbrio é a palavra-chave mesmo, Fatima :) Um abraço!
Luísa,
Parabéns pelo blog. Textos sensacionais!
Só ‘descobri’ ele hoje, mas a partir de agora serei um fiel leitor. rs
Um abraço!
Que massa, Leandro! :D Obrigada pela leitura e pelo comentário ;) Volte sempre por aqui! Um abraço
Como minha mãe dizia o que seria do azul se todos gostassem do vermelho??
Verdade, Miriam! :D
lindíssima, falou tudo!!!!!
Obrigada, gatona! :D
Nossa, incrível essa postagem! Suas palavras são lindas e bastante inspiradoras. A verdade é que a mudança deve acontecer no nosso próprio mindset, e nem sempre uma viagem é capaz disso. Tem pilares que sustentam nossa vida e quem a gente é, e só mudar de um lugar pra outro não vai fazer os pilares deixarem de existir. A mudança acontece dentro da gente, independente de onde estivermos! :) Beijos amei teu blog!
Exato, Jessica! :) Concordo totalmente com você. A viagem pode ser um empurrão pra várias mudanças, mas o que mais importa é o que rola aqui dentro, né? Falei sobre isso nesse post aqui também: https://janelasabertas.com/2018/04/16/viajar-para-se-encontrar/ :) Que bom que você gostou do blog, muito obrigada! <3
Oi, Luísa! Adorei o blog e me encontrei em suas palavras! Amo viajar, mas vivo repetindo que esse é o meu modo de ser feliz. Tenho amigos que são felizes indo todo verão para a mesma casa de praia, outros que chegam ao êxtase vendo uma partida de futebol, outros que ficam felizes ao sentir cheiro de carro novo…Respeito a prioridade de todos e adoro quando descubro que alguns também querem embarcar comigo. Um abraço!
Exato, Suzy! Cada um tem que entender quais são suas prioridades, né? Não existe regra, o importante é se conhecer e buscar o que o faz feliz. Obrigada pelo comentário! :) Um abraço